terça-feira, 9 de junho de 2009

MATAR POR UM LIVRO: A PAIXÃO ANARQUISTA DO LEITOR


Hà fábulas que não cabem no mundo da universidade. Fábulas que me devolvem as razões da humanidade. Em dezembro li um livro desses. Em uma história coral, múltipla, fantástica e cruel encontrei um um leitor e sua leitura...

Uma leitura em que a liberdade anárquica de um leitor se torna defesa assassina do objeto dessa liberdade, o livro, se encontra em uma das muitas histórias que se entrelaçam no romance Storia di Neve, de Mário Corona (2007). A jovem Neve, protagonista do romance, gosta de passear pelo bosque onde os lenhadores “fazem a madeira e os machados cantarem”, e ela gosta desses sons. Entre os lenhadores, ela é amiga do velho Lídio que, durante as pausas do trabalho, costuma ler um livro. Neve fica curiosa e, um dia, pergunta-lhe de que livro se trata, inclusive porque “de tanto manuseá-lo, as páginas mal ficavam ainda juntas” (p. 483). O velho responde que ele não sabe, pois nunca aprendeu a ler. Neve pergunta, então, como ele pode ler se não aprendeu a ler, e Lídio revela uma perspectiva interessante sobre a liberdade do leitor que o livro proporciona:

“... Eu não sei nem ler nem escrever, mas quando olho para as páginas desse livro histórias, muitas histórias me vêm à cabeça, uma apos a outra, e as conto para mim mesmo, assim é como se estivesse lendo o livro. Acredito que o livro contenha uma única história, mas eu invento muitas olhando para as páginas, e são histórias bonitas, se eu soubesse escrever as escreveria, mas um dia vou contar umas para você” (p. 484).

Neve pergunta para Lídio se ele consegue inventar histórias sem olhar para o livro, mas ele responde que não, sem abrir as páginas não nascem, são as páginas que as despertam, e assim “... você vê que, na prática, leio histórias sem saber ler” (p. 484).

Curiosa, Neve pede ao velho o livro emprestado e vê tratar-se de Os Noivos, de Alessandro Manzoni, que ela nunca lera. Neve propõe ao velho a leitura do romance e, no começo, somente Lídio parava para ouvir mas, em poucos dias, todos os lenhadores se aproximaram para ouvir a leitura, para escutar a narrativa das desventuras de Renzo e Luzia. O fim da leitura do livro provoca, em todos esses leitores ouvintes, um sentimento de tristeza. O mais triste de todos, porém, é o próprio Lídio, porque, explica,

“... agora já conheço a história de meu livro, e quando viro as páginas elas não me dizem mais nada. As páginas não me contam mais histórias, não me deixam mais inventar histórias para mim. A única história que me contam é aquela que você leu, mas essa eu agora já conheço. Preciso encontrar um outro livro, que eu não sei o que tem dentro, e então, talvez, as histórias voltem” (p. 485).

Neve resolve presenteá-lo com seu livro de gramática, e não lê sequer uma linha para Lídio, que volta a “inventar” (de inventio = encontrar) as histórias nas páginas. Dois anos mais tarde, Lídio se apresenta ao padre da aldeia, dom Chino, que se maravilha pelo aparecimento do velho, pois esse costumava rezar somente nos bosques e não freqüentava a igreja. Ainda por cima, lia e relia o mesmo livro sem saber nem ler nem escrever. Anteriormente, Lídio visitara Neve e deixara-lhe de presente Os Noivos. O velho quer se confessar, mas “de homem para homem”, olhando nos olhos de dom Chino. Se confessa, assim, com uma garrafa e dois copos de vinho na mesa, assumindo a culpa de ter matado um homem. A razão de seu homicídio reside no livro que esse homem roubou dele, o mesmo que Neve lhe dera. Quando Lídio pediu ao homem que o devolvesse, esse o ignorou. Tomado por um raptus, Lídio cravou-lhe a foice no peito, pois o homem mentira, dizendo-lhe que queimara o livro. Lídio, com efeito, não acredita e, depois de matar, procura e encontra o livro, que leva, manchando sua capa com o sangue.

Agora, cheio de remorsos, resolveu confessar e ir embora. Com efeito, depois da confissão, Lídio desaparece da aldeia, sem deixar vestígios. Muito tempo depois, será a própria Neve que encontrará um esqueleto. Ela mesma o identifica como os restos de Lídio, graças a uma lata selada ao lado dos ossos, que contem, entre outros objetos, o livro que Neve lhe dera e com o qual será enterrado.

2 comentários:

  1. Fada, ao ler seu post, me veio a lembrança da história de uma jovem que, com o cérebro quase atrofiado pelas falsas maravilhas da Terra encantada de OZ, agarrou-se a um colmo de cana e permaneceu durante três anos com a idéia fixa de que essas extraordinárias produtoras de sacarose pudessem ser capazes de fazê-la escrever novos contos...tudo manha, engenho...Estes tais "smorfs" brasileiros servem mesmo é como "despigmentadores" de fios! Só não se sabe ainda se a jovem não conseguiu captar o que a natureza lhe dizia ou se a "Neve" dessa vez caiu como granizo e acabou com a plantação!

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  2. Querida Cris, talvez, digo, talvez, a jovem que se deixou enfeitiçar pela pequena OZ tórpida & tropical tenha como destino inventar a cana certa para produzir papel eternamente durável e que, quando descartado, possa ser utilizado para adoçar o café... patenteie, venda e fique rica!

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