segunda-feira, 29 de junho de 2009

A VINGANÇA DE EVA. CAPÍTULO II



Mas eles continuavam sem sexo. E o teu corpo, moldado na matéria mais vil e inerte, a lama, clamava por outras satisfações que as pobres criaturas nobres não podiam realizar. De novo, você foi reclamar com o Pai. Como ele respondeu que você já teve uma chance e não deu certo, você argumentou com ele com as habilidades recém adquiridas dos anjos: aquele linguajar habilidoso que convence com elegância. Você se tornara muito bom, com as palavras. O Pai sorriu indulgente e cedeu, ao filhinho mimado, mas tão inteligente, tão bom de logos, que se parecia mesmo, nisso, com Ele. O Pai é vaidoso, fica se regozijando na confirmação de suas habilidades, em ato de eterna congratulação consigo mesmo. Enfim, não é por isso que criou as hierarquias mais altas de alados? Afinal, o que mais os serafins ficam fazendo? Emanações que ficam bajulando pela eternidade o Pai e sua criação. Vai vendo, cada um se diverte como pode! Você, se parece com ele nisso, também. Têm mesmo lados da criação “à imagem e semelhança Dele” que deram certo. Ah! Triste cegueira, essa dos pais! Nunca se sabe se eles desviam o olhar sobre os aspectos ruins do caráter de seus filhos por preguiça, por descaso o porque preferem fingir que o que viram foi engano, seus filhinhos não são assim.

A cegueira da paixão do criador por sua criação: sabemos que é imperfeita, mas gostamos de acreditar que não o é. Lembre-se de quando, depois, você não quis enxergar os problemas de ciúme entre os gêmeos. Depois ficaram me xingando secula secularum por ter criado o primeiro criminoso.

Adão: nossa vida selou o destino humano. Tudo, a partir de nós, se tornou uma infindável soap-opera. Inclusive com os mortos que voltam. Mistérios da fé. Uma soap-opera para alegrar o Diretor? Velha teoria: então o Pai seria uma senhora aposentada que passa o tempo inteiro no sofá rindo, chorando e torcendo para a telinha da tevê.

Se assim é, então no roteiro o Pai pensou em uma solução aparentemente definitiva para tornar inesgotáveis as variações sobre o tema de suas ontologias: uma nova companheira para satisfazer as necessidades da tua lama.

O Pai era inteligente, e entendia que essa criatura tinha que ser geneticamente compatível. Te anestesiou, retirou as células estaminais, manipulou um pouco para que fosse fêmea, porque você resolveu ser heterossexual, e quando você acordou, lá estava eu. O Pai ficou satisfeito, você agora tinha um brinquedinho novo. Aos olhos dele eu nunca passei muito disso, nunca me amou como ama você. Não tem jeito, por quanto possa ter me esforçado, nunca mereci muito mais do que um afeto distraído. Enfim, em tudo isso, lá estava eu, com tuas mesmíssimas habilidades, pois era você na essência da matéria. E não só isso: era você porque as habilidades que os anjos te ensinaram eu as absorvi com a própria essência vital retirada de você, também faziam parte de mim. Não sei se o Pai fez isso de propósito, para me dar alguma chance ou se, cegado pelo furor criador, acabou esquecendo desse particular. O que vi foi que você acreditava possuir, agora, o brinquedo perfeito, algo que podia tratar como bem entendesse, mas ao qual não devia satisfação qualquer, nunca. Você pensou, e pensou muito errado, que eu era sua propriedade, uma mulher submissa que não enchia teu saco, a tua disposição sempre e para a satisfação de todas as tuas exigências.

Eu, recém criada, vi que você era mais alto, mais forte e, por ter nascido antes, mais experiente e, ingênua, me dispôs a aprender. E aprendi logo, sim, senhor.

Aprendi logo que era melhor ficar calada. A primeira vez que você ficou irritado foi quando eu perguntei alguma coisa, sei lá o que, acho que era algo sobre o nome que você dera à girafa. Isso mesmo. Você estava de lua, levou a mal minha pergunta, virou enfurecido e me mandou calar a boca. Assustada, perguntei por que, e você me deu um empurrão, me virou e me deu um murro nas costas que me tirou o fôlego. Você mostrou o que achava mesmo, que era o meu dono e podia me tratar que nem os bichos em volta. Eu fugi, chorando, implorando pela ajuda do Pai, mas ele estava muito ocupado estudando suas novas invenções, buracos negros, anãs brancas e gigantes vermelhas. Não tinha tempo para essa criatura que criara para satisfazer os caprichos do filho. Então, me escondi no meio das árvores, onde adormeci, com o soluço preso entre a garganta e o peito. Estava ainda com os olhos molhados de pranto, quando acordei. Não tinha ninguém, literalmente, a quem recorrer. Não tinha ninguém, fora você. Que estava me procurando, porque me ver apanhar, chorar e fugir despertara teus sentidos. Quando você me encontrou, me retrai. Você tentou me amansar com palavras gentis. Pediu desculpas mil vezes. Se ajoelhou na minha frente. Deu cambalhotas para mostrar que não tinha nada a temer. E colheu uma flor para por entre meus cabelos. Falso.

Minhas costas doíam pelo murro recebido. Estava com tanto medo que me retrai de você. Depois, você perdeu novamente a paciência e me agarrou pelos cabelos, puxando com força.

Me jogou no chão e me estuprou, como um animal.

Depois, deitou ao meu lado e me contou o que tinha acontecido com a Outra.

Aquela que não obedecia. Disse que se eu não quisesse acabar como ela, sofrendo lá fora, sozinha com os demônios, devia me submeter, obedecer e ficar calada.

Daquele dia em diante, aprendi a agradar. Sorria, ainda que meu rosto ficasse doído em uma careta contraída. Deitava quando você mandava e respondia somente quando perguntada.

Virei a mulher modelo.

Você estava muito, muito satisfeito. Vez ou outra o Pai passava por aí e te perguntava como iam as coisas e você, muito feliz e à vontade, respondia que se sentia em um Verdadeiro Paraíso. Melhor não podia ficar. Você dizia que só tinha a agradecer por sua vida maravilhosa. O clima era perfeito, a comida farta, a mulher gostosa, obediente e disponível.

O Pai também me perguntava como iam as coisas. Teus olhares eloqüentes atrás dele tornavam minhas respostas aquelas desejadas. Um mundo perfeito. O teu mundo. A outra metade, a minha, era parte da perfeição alheia, a tua, sem gozar da própria. E, acima de tudo, sem esperança de mudar a situação nunca e jamais. Certo, havia momentos em que as coisas não iam tão mal, momentos de certa maneira agradáveis. Mas quando eu saia da linha, eis que tua mão caia pesada.

Foi por isso, meu bem: você nunca se perguntou que vida de merda eu levava, pois a tua era perfeita. E eu, sem alternativa. Pelo menos, assim acreditava. Até que um dia ela entrou, disfarçada.

Você não gostava de todos os animais que nos cercavam. Resultados das brincadeiras do Pai, havia de tudo, de mamíferos a répteis. E desses, em particular, você tinha asco. Sabe-se lá porque, o fato é que você sempre teve uma idiossincrasia com esses bichos. Também não estão entre os meus favoritos, mas eu tenho asco bem maior das pombas, aves nojentas que cagam e esvoaçam próximas demais. Enfim, quando tinha uma cobra ou um calango por perto, você caia fora. E foi assim, que ela entrou e se aproximou de mim: porque você não estava por perto para me vigiar.

A primeira vez você viu a cobra se aproximando, levantou e me disse que ia contar os carneiros. Eu sabia que isso significava que logo você adormeceria e dormiria por algum tempo. Quando você conta carneiros não agüenta muito. Catar coquinhos, por outro lado, te apaixona, eu acho que é uma grande asneira, mas como você se deleitava em faze-lo, eu frequentemente te convidava a ir catar coquinhos, rindo secretamente de tua estupidez. Darling, demorou anos, antes de você perceber que eu estava te xingando! Então: você viu a cobra e foi embora. Eu fiquei deitada à sombra da laranjeira, chupando laranja, feliz em te ver ir embora. Estava entediada. Tinha tanta coisa que queria saber, conversar, e a nulidade que você representava ao meu lado estava satisfeita, obrigado, quero continuar tão besta como era no primeiro dia. E aqueles tesouros que os anjos te ensinaram, que eu possuía na carne que o Pai tirou de você permaneciam em mim sem expressão, como uma pressão, uma opressão dolorida na barriga. Como depois diriam as gentes: quem tem pão não tem dentes. Os anjos não falavam comigo como com você, pois também tinham se acostumado a me ver como teu apêndice, teu brinquedo de estimação, tua propriedade. Todos estavam convencidos que minha mansidão, minha submissão eram inatas ou, como diriam em outros momentos, genéticas. Que minha docilidade decorria da mão habilidosamente criadora do Pai. Somente eu sabia que era tudo uma grande mentira e, para falar a verdade, estava muito cansada desse Inferno em que o Pai e você me colocaram. Qualquer coisa, para fugir.

E ela entrou e rastejou na grama, e se enrodilhou ao meu lado. Fiquei parada, para não incomodá-la. Observei suas escamas, brilhantes, coloridas, luzentes sob o sol. Eu, como você, tinha a faculdade de falar com os animais. Raramente a usava, pois você se incomodava, seu egoísmo lingüístico se tornara vaidade fútil do “eu posso ordenar que você não faça”, e eu obedecia na frente de você, que estufava o peito. Mas quando estava sozinha, tomava minhas liberdades e conversava com o que eu queria. Elogiei suas cores e brilhos, e ela pareceu satisfeita com minhas palavras, ondulando de leve a cabeça e mostrando a língua vibrante. Levantei a mão para acariciá-la e ela se estirou, apoiando a cabeça sobre minha perna. Ficamos assim um tempo, ela apoiada, eu acariciando-a. Em algum momento meus sentidos devem ter se confundido, quando percebi que estava cercada por um nevoeiro sutil, quase material, inédito na paisagem conhecida. E o que estava acariciando era a cabeleira de uma moça da minha idade, com os mesmos meus traços no rosto. Minha mão tremeu indecisa e ela abriu os olhos. Os meus. Era como me olhar em uma poça de água, pois seu rosto parecia flutuar em ondas leves. Me olhou e sorriu. Sorri. Sabia muito bem quem era. Estava feliz. Tinha me encontrado.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A VINGANÇA DE EVA. CAPÍTULO I


UM FOLHETIM EM TRÊS CAPÍTULOS.

Uma produção de ficção em três capítulos, para alimentar a curiosidade (sempre um pouco mórbida) de quem gosta de romances de sensação e se tornar as/os Emma Bovary do século XXI! Pura diversão pop sem qualquer misticismo!!!! Desaconselhada aos que confundem ficção e realidade!!!
O segundo capítulo só segunda que vem, se sua sede de narrativa sensacionalista estiver insaciável!!! Alimentem sua fome pelas histórias de alto conteúdo calórico!!!!




Meu nome é Eva.

Dizem que fui seduzida por uma serpente, que cai na tentação. Mas eu preciso contar como foi que as coisas aconteceram. Vocês precisam conhecer a versão da mulher insubmissa que encontrou a mulher insubmissa, renegada e ainda apagada e esquecida, aquela que não é mãe de ninguém, criadora somente de medos e espantos, a serpente maldita pelos homens. Com efeito: pelos homens. Vocês deveriam me agradecer por cair na tentação dessa maravilhosa criatura, que assim me tirou do inferno do Éden, onde reina soberano o tédio de infinitos dias tranqüilos e sempre iguais, prestando serviços sexuais gratuitos, mudas, caladas e obedientes, a homens sem umbigo e sem costela. E ainda por cima, não por prazer, mas para dar filhos a Deus.

No teu paraíso eu não queria mais ficar.

Eu não pertenço a ninguém, ninguém me tutela, ninguém manda, ninguém obedece. Você não me quer, não. Não quer essa idéia. Essa idéia seduz, ela é poderosa, ela é perigosa. Por isso você não me quer. Por minha vontade você perdeu teu Paraíso. Perdeu o lugar que pela palavra era o teu domínio. Porque eu tenho vontade e curiosidade. Porque eu não preciso de você.

Por isso você me quer. Para mostrar ao machos do boteco que sabe dominar e decidir por mim, me manter submissa e acorrentada. Você quer isso só de birra, porque te faz sentir poderoso e invencível. Todos os dias de minha vida, todas as noites de tua vida.

Quando você foi criado, ao mesmo tempo ela também foi, da mesma substância. Quem mais se aproximou de tua origem foi aquele grego, o tal que chamou vocês dois de andróginos: dois sexos na mesma matéria, divididos e destinados a sofrer se procurando. Pois é, você e ela, não você e eu, vocês com o mesmo poder o mesmo saber: argumentava e desobedecia, indócil e contraria. Assim você começou a vê-la. Ria, tagarelava e brigava com você. Você estava apaixonado. Não a amava, ainda. Há uma diferença substancial, entre paixão e amor. Na paixão, você olha para o objeto de seus desejos, algo desconhecido. Você inventa um retrato que corresponde a esses desejos, dos quais o objeto nada sabe. Um retrato estúpido de fantasias. O amor é o apagamento desse retrato, quando aos poucos aos traços de nossas ficções se substituem os traços da experiência. Isso pode doer um pouco, a gente pode decidir que o retrato que substitui nossos desejos é chato. Foi assim, com ela. Ela se divertia, rolando na grama com você, dois coelhos na primavera, e sabia o que queria, quando e quanto. Mas você, você ficou decepcionado. Às vezes, o que ela fazia não correspondia às tuas fantasias. Eu te conheço bem, sei quão narcisista e egoísta você consegue ser, especialmente em relação ao que você quer. Não gostava mais dela. As capacidades dela, em nada devendo às tuas, te cansavam. Ainda mais porque ela mostrava muita curiosidade. Você tinha que estar à altura de alguns desafios muito racionais, ver que nem sempre você estava certo sobre tudo. Saber que teu domínio não era total, que você tinha que se refrear quando ela falava. E aí, você cometeu a primeira infâmia: foi reclamar com o Pai, que tanto te amava, assim como a amava. Mas ela não foi reclamar, ela que também devia se refrear quando você falava, ela cujo domínio, como o teu, não podia ser total, pois ela também, como você, se deparava a cada instante com o limite do outro igual e diferente. Assim, você aproveitou do amor do Pai para se livrar do incômodo que ela se tornara.

De nada adianta inventar a desculpa que você era jovem e inexperiente. Só desculpa, mesmo. Você tem a consciência tão clara da baixaria que fez a ponto de tentar apaga-la e esconde-la. No futuro que passou, essa parte da história ficou de lado, sempre que aflorava alguém cuidou para que fosse, no mínimo, denegrida. Essas fábulas, quando se tornam mito, se tornam armas perigosas: quem controla o mito, controla a camada mais profunda da memória.

O resultado da tua bela ação foi que o Pai exilou tua irmã e amante. Você a xingou de demônio, e por querer teu mesmo logos criador, e não somente a cria de teu sêmen, você espalhou maldades sobre ela: que andava por aí cercando berços com seus incubi. Espantalho de crianças. É assim que você liquidou a Primeira, a Esquecida.

Depois, por um tempo, você achou que dar ordens aos leões para sentar, deitar e brincar de morto, e instruir os elefantes para andar sobre as patas dianteiras fosse o máximo da felicidade.

Porém. Porém. Porém.

Os anjos te visitavam com freqüência, sabiam que você andava se sentindo solitário. Porém. Porém. Porém.

Havia o problema deles não ter sexo. Isso acabava com a tua diversão. Tudo bem, por um tempo você aproveitou essa companhia. Eles te explicavam a ordem perfeita do universo, levando você aos rudimentos da matemática, da física, da geometria, da astronomia. Enfim, gravavam em você as essências. Sempre aquele grego, depois, contando uma boa versão dessa história, chamou as essências de idéias. Eram muito bons de papo, e isso permitiu que você adquirisse habilidade retórica e dialética – e ainda bem que eles te deram a gramática, pois você falava errando tempos e concordâncias! - pois eles debatiam entre si de maneira sublime. Ainda, a trilha sonora era agradável mesmo que, às vezes, você se entediasse profundamente com o som das harpas e das trombetas, das trombetas e das harpas. E os coros? Aqueles Aleluias intermináveis! Depois de um tempo, que aborrecimento, dava pra perceber que um bom rock estava a milênios de distância de acontecer!.......(TO BE CONTINUED)

terça-feira, 16 de junho de 2009

ANHANGUERA MON AMOUR: PRELIMINARES

Entre São Paulo e Ribeirão Preto os impostos estaduais que se pagam para a manutenção rodoviária não valem. O que vale mesmo é o pedágio, aliás, os pedágios. São oito, distribuídos ao longo de três trechos confiados aos cuidados de três empresas: Autoban, Intervias e Autovias. O custo do pedágio supera os quarenta reais na ida e na volta. Plus combustível. Entre um pedágio e outro há uma média de 20 quilômetros, em geral não tem filas e a rodovia é em ótimo estado de conservação. Em alguns trechos há até placas indicando o uso experimental de asfalto de pneus velhos. Há um monte de postos de atendimento aos caminhoneiros e aos usuários. Com efeito, caminhão é o que mais tem e, em geral, representam o lado “loop da morte”, especialmente no sentido Ribs-Sampa, na área do parque de Vassununga: ali a descida é íngreme, eles passam ao meu lado aos 140 por hora. Legal, especialmente à noite, para quem gosta de fortes emoções. Andar pela Anhanguera pode provocar muita adrenalina. A estrada é reta, só sobe e desce, e sobe, e desce, e sobe e desce... Em volta só tem cana. Teria tudo para você dormir... Mas graças aos caminhoneiros, isso é impossível. Eles tornam tudo muito mais agitado. São milhares, e às vezes é possível parar duas horas debaixo do sol escaldante, quando um deles deixa o rastro de sua carga na pista. Uma vez fiquei duas horas esperando os bóias frias retirar toneladas de laranjas da estrada. Também, há um bocado de policiais à espreita, atrás da árvore, que aproveitam o embalo dos motoristas para reerguer as finanças do estado. As obras na pista são freqüentes, as três empresas se esmeram em mostrar como o dinheiro arrecadado nos pedágios é utilizados. Por exemplos, é gasto em alegres cones listrados, brancos e laranja. Não, juro, é bonito ver que sempre tem cones novinhos. Provavelmente são descartáveis, nunca se reutilizam. Os cones servem para estreitar a pista e enfeitá-la. Como a pista fica mais estreita, você anda mais devagar, para poder admirar as atividades intelectuais de manutenção. Em geral depois de uns dois quilômetros de estreitamente, estão os operários, reunidos em meditações sobre o que há de ser feitos. Também, podem estar lanchando, almoçando ou descansando. Acho que aguardam que os carros passem, para retomar o trabalho.

À noite, é possível encontrar misteriosas figuras que andam pela rodovia. A pé, no escuro, quase invisíveis, e nunca entendi de onde vêm e para onde vão, já que aparecem em lugares distantes dos centros urbanos. Há também um bom número de moças & mulheres “profissionais do chiclete”, que animam a corrida acenando para que todos possamos compartilhar os mistérios da mastigação.

terça-feira, 9 de junho de 2009

STEPHEN KING, ÚSTICA & OUTRAS TEORIAS (CONSPIRATÓRIAS)


Um conto de Stephen King, que virou trash(issimo) movie, tem como assunto um avião cujos ocupantes desaparecem durante o vôo, fora um grupinho que, ao que se entende, é composto pelos que estavam dormindo. Por sorte (deles e do conto), um é piloto, e consegue aterrissar. É um conto do terror que acaba bem, visto pelos olhos na perspectiva da aventura (com direito a monstros e prodígios) do grupinho. É a primeira coisa que me veio à cabeça quando ouvi a notícia do AF 447.
A segunda foi Lost, evidentemente um desejo infantil, contaminado pela mídia, de que, ainda que em condições perigosas/misteriosas/aterrorizante tivesse algum sobrevivente em cima de uma ilha flutuante, atualmente o lugar no mundo com a maior concentração de população, visto que a ilha deserta desse seriado, tem um vai-e-vem de gente que nem lembro quem é quem. Bom, então, tanto o Stephen King como o seriado sobre as multidões de todos aqueles que desapareceram no mundo se encontrarem na ilha acabaram me dando sugestões sobre os acontecimentos. Sinto-me autorizada por várias razões, que vou expor:
A prioridade podia até ser encontrar sobreviventes, mas a essa altura, não há mais ninguém. Que tal voltar ao que aconteceu, já que aviões sobem e descem todo dia, e numa dessa você acaba virando mais um nome do Titanic da aviação. Dizem por aí que é difícil encontrar os restos. Estão muito fundos. E é aqui que eu fico insatisfeita, porque
Ao que parece, todos ficam mais tranqüilos trocando aquele tubinho em baixo, que pega frio e congela, e aí comunica dados errados de velocidade. A culpa é atribuída à pecinha, troque-a e viaje tranqüilo. Mas os murmúrios continuam, pois parece que agora praticamente todas as aeronaves já mostraram problemas com isso. Mas como a caixa preta “calou-se” no abismo marinho, pessoal parece quase ter desistido da busca principal, para priorizar o lado do pathos familiar de vitimas & parentes Venhamos e convenhamos, algumas coisas, para quem vem de um país de mistérios públicos & terrores institucionais como o meu, são balelas, porque há um caso de avião que desapareceu de maneira parecida:
O mistério de Ústica e do DC9 Bolonha/Palermo, desaparecido “misteriosamente” de qualquer radar e de qualquer comunicação rádio no dia 27 de junho de 1980, às 21.05 da noite, enquanto se preparava para pousar em Palermo, nas proximidades da Ilha de Ústica. Bom, a última comunicação do avião incluía piadas, quando de repente a comunicação se interrompe, partindo a palavra “olhe” na boca do piloto. O avião, simplesmente, some dos radares dos controles de vôo de Ciampino e de Palermo. Depois, o silêncio. No dia seguinte, começam as buscas e, aos poucos, os corpos afloram. Morrem em 81, resgatam-se 28 corpos. O avião está a 3700 metros de profundidades, custa muito procurar. Uma primeira resposta fala de “falha técnica”, ou seja: o avião, simplesmente, era velho e se partiu. Mas essa resposta não foi muito satisfatória, pois os responsáveis da empresa e da parte de manutenção, obviamente, buscaram “tirar o deles” da reta e demonstraram que não havia possibilidade disso acontecer (piloto esperto & navegado, manutenção impecável, enfim, tudo certinho). Novos inquéritos são abertos, pois começam a aparecer incongruências e reticências. Por exemplo: as gravações entre a torre de controle de Ciampino revela que os pilotos estavam na rota perfeita, mas que pediram para verificar os radiofaróis, pois todos resultavam apagados pela instrumentação de bordo. O controle confirmou isso. Até que, em 1987, perante as muitas, demasiadas dúvidas da sociedade, finalmente o governo italiano encontrou o dinheiro para recuperar os restos do aparelho pagando, para isso, uma empresa francesa. O que se vê acima, na foto, é a reconstrução do avião como se encontra, hoje, em um hangar de Bolonha, reconstrução realizada com os vestígios originais encontrados da aeronave. Bom, a história de como o avião de Ústica foi abatido é, com certeza, digna de Ian Fleming, mas, infelizmente, é real, e não estou inventando, se alguém quiser verificar os fatos e ficar absolutamente maravilhado com o que os serviços secretos “desviados” de um país podem fazer em termos de desinformação é só assistir aos 4 vídeos sobre o tema no youtube (acessar digitando: blu notte ustica, no espaço de busca). Os inquéritos mostram a relação entre um MIG da Líbia que caiu 20 dias depois do jato civil em território italiano enquanto ia para reabastecer na então socialista Jugoslávia de Tito com o vôo Itavia que desapareceu. Os inquéritos revelaram que no céu, naquela noite, avia muito mais que um avião civil indo para a Sicília, havia um batalhão inteiro: caças franceses saídos da Córsega, caças italianos saídos da base militar de Grosseto, na Toscana, um caça americano e... um MIG. Apareceram, ao longo dos anos, novas gravações, novas declarações, mortes suspeitas.... O conjunto completo dos temperos de best-sellers de espionagem & traição). Moral da história, as autoridades judiciárias, na base dos relatórios das comissões de inquérito instituídas ao longo do tempo, estabeleceram os fatos, mas não encontraram os culpados... Basicamente: houve uma batalha, nos céus, naquela noite. Um MIG tento passar, os franceses, americanos e italianos o perseguiram e atiraram. Só que ele estava escondido debaixo da barriga do avião civil, portanto não se sabe se o jato foi derrubado porque acabou entrando na explosão geral ou porque um míssil o atingiu.
Com isso, eu não quero em momento nenhum afirmar que teve necessariamente algo parecido. O que me parece incongruente, é a parte do “silêncio”, essa falta de “rastreamento” do aparelho ao longo do vôo. O vôo AF 447 se parece mais um caso de “ninguém sabe, ninguém viu”. Porque digo isso, e aqui já vou encerrando essa reflexão assaz inútil: verdade é que a Itália é um lugar povoado e de interesse estratégico e cheia de bases militares, portanto literalmente – como o caso do avião de Ústica ensinou – COBERTA DE RADARES MILTARES e de comunicações, que permitiram que, no final das contas, acabaram registrando sim a presença de um montão de aviões voando por aí sem identificação.
A incongruência? Para mim, é essa: a tecnologia de hoje permite muito mais, com sistemas GPRS, GPS e outras coisicas parecidas. E quer dizer que ninguém em lugar nenhum viu absolutamente nada? Conta outra, coelhinho da páscoa, enquanto vou passar minhas férias na Terra do Nunca!

MATAR POR UM LIVRO: A PAIXÃO ANARQUISTA DO LEITOR


Hà fábulas que não cabem no mundo da universidade. Fábulas que me devolvem as razões da humanidade. Em dezembro li um livro desses. Em uma história coral, múltipla, fantástica e cruel encontrei um um leitor e sua leitura...

Uma leitura em que a liberdade anárquica de um leitor se torna defesa assassina do objeto dessa liberdade, o livro, se encontra em uma das muitas histórias que se entrelaçam no romance Storia di Neve, de Mário Corona (2007). A jovem Neve, protagonista do romance, gosta de passear pelo bosque onde os lenhadores “fazem a madeira e os machados cantarem”, e ela gosta desses sons. Entre os lenhadores, ela é amiga do velho Lídio que, durante as pausas do trabalho, costuma ler um livro. Neve fica curiosa e, um dia, pergunta-lhe de que livro se trata, inclusive porque “de tanto manuseá-lo, as páginas mal ficavam ainda juntas” (p. 483). O velho responde que ele não sabe, pois nunca aprendeu a ler. Neve pergunta, então, como ele pode ler se não aprendeu a ler, e Lídio revela uma perspectiva interessante sobre a liberdade do leitor que o livro proporciona:

“... Eu não sei nem ler nem escrever, mas quando olho para as páginas desse livro histórias, muitas histórias me vêm à cabeça, uma apos a outra, e as conto para mim mesmo, assim é como se estivesse lendo o livro. Acredito que o livro contenha uma única história, mas eu invento muitas olhando para as páginas, e são histórias bonitas, se eu soubesse escrever as escreveria, mas um dia vou contar umas para você” (p. 484).

Neve pergunta para Lídio se ele consegue inventar histórias sem olhar para o livro, mas ele responde que não, sem abrir as páginas não nascem, são as páginas que as despertam, e assim “... você vê que, na prática, leio histórias sem saber ler” (p. 484).

Curiosa, Neve pede ao velho o livro emprestado e vê tratar-se de Os Noivos, de Alessandro Manzoni, que ela nunca lera. Neve propõe ao velho a leitura do romance e, no começo, somente Lídio parava para ouvir mas, em poucos dias, todos os lenhadores se aproximaram para ouvir a leitura, para escutar a narrativa das desventuras de Renzo e Luzia. O fim da leitura do livro provoca, em todos esses leitores ouvintes, um sentimento de tristeza. O mais triste de todos, porém, é o próprio Lídio, porque, explica,

“... agora já conheço a história de meu livro, e quando viro as páginas elas não me dizem mais nada. As páginas não me contam mais histórias, não me deixam mais inventar histórias para mim. A única história que me contam é aquela que você leu, mas essa eu agora já conheço. Preciso encontrar um outro livro, que eu não sei o que tem dentro, e então, talvez, as histórias voltem” (p. 485).

Neve resolve presenteá-lo com seu livro de gramática, e não lê sequer uma linha para Lídio, que volta a “inventar” (de inventio = encontrar) as histórias nas páginas. Dois anos mais tarde, Lídio se apresenta ao padre da aldeia, dom Chino, que se maravilha pelo aparecimento do velho, pois esse costumava rezar somente nos bosques e não freqüentava a igreja. Ainda por cima, lia e relia o mesmo livro sem saber nem ler nem escrever. Anteriormente, Lídio visitara Neve e deixara-lhe de presente Os Noivos. O velho quer se confessar, mas “de homem para homem”, olhando nos olhos de dom Chino. Se confessa, assim, com uma garrafa e dois copos de vinho na mesa, assumindo a culpa de ter matado um homem. A razão de seu homicídio reside no livro que esse homem roubou dele, o mesmo que Neve lhe dera. Quando Lídio pediu ao homem que o devolvesse, esse o ignorou. Tomado por um raptus, Lídio cravou-lhe a foice no peito, pois o homem mentira, dizendo-lhe que queimara o livro. Lídio, com efeito, não acredita e, depois de matar, procura e encontra o livro, que leva, manchando sua capa com o sangue.

Agora, cheio de remorsos, resolveu confessar e ir embora. Com efeito, depois da confissão, Lídio desaparece da aldeia, sem deixar vestígios. Muito tempo depois, será a própria Neve que encontrará um esqueleto. Ela mesma o identifica como os restos de Lídio, graças a uma lata selada ao lado dos ossos, que contem, entre outros objetos, o livro que Neve lhe dera e com o qual será enterrado.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

ANHANGUERA MON AMOUR: DELÍRIO CRIMINOSO.


Era uma vez...

Uma senhora idosa, interessada em ervas, tarô e medicinas alternativas que, depois de uma longa vida de trabalho honesto, construiu um casinha como sempre desejou. O sonho de uma aposentada gulosa, uma casinha feita de chocolate e chantilly, construída graças a uma certa riqueza, fruto do trabalho de uma vida. Uma vida honesta, um trabalho honesto e, finalmente, a casinha dos sonhos, já adentrando o Mar da Cana, logo às margens do Riacho Negro que corre saltitando e cantando.

Esta casinha despertou a cobiça e as más índoles de dois irmãos pré-adolescentes, criancinhas cujos pais resolveram abandonar na rua, os imigrantes alemãos Hansel João e Gretel Maria, naturalizados brasileiros.

Voltando à velhina. Trata-se de senhora idosa, com um passado: as fofocas dizem que freqüentava círculos exclusivamente femininos, especialmente aos sábados, que o visual inusitado mereceu-lhe o apelido de bruxa, por parte da comunidade masculina da cidadezinha onde a vítima, os algozes e a família deles residiam, às margens da Floresta da Cana, às margens do Riacho Negro. Possuía uma renda suficiente para garantir um certo estilo, várias mordomias e privilégios, além da propriedade de uma casa evidentemente atraente para os então jovens infratores Hansel João e Gretel Maria.

Os dois elementos criminosos revelaram suas más intenções desde que começaram a cobiçar a propriedade da velha. O primeiro ato doloso dos dois, com efeito, foi de vandalismo contra o imóvel: comeram parte das janelas e do portão de chocolate. Surpresos em flagrante delito pela proprietária, alegaram ter aproveitado das partes da construção movidos pela extrema indigência em que se encontravam. Em um segundo momento, aproveitando de uma brecha na negociação com a idosa senhora para concertar os danos, os dois se ofereceram para realizar serviços de faxina e manutenção dentro da casa, como forma de ressarcimento.

Sabemos da história somente a versão dos dois criminosos, mas a verdade é bem outra, e se revela com clareza, através da aplicação de um processo criativo baseado no método histórico e na observação da paisagem humana e natural em volta da residência no Mar de Cana às margem do bendito Riacho Negro.

Os restos da velha, encontrados carbonizados na churrasqueira do quintal, testemunham da violência com a qual os dois agressores se voltaram contra ela. A jovem Gretel Maria, sozinha, jamais poderia levar a cabo o crime, precisando da ajuda do irmão. Depois do assassinato, os dois concordaram uma versão dos fatos mentirosa e baseada em preconceitos aceitos na comunidade: acusaram a velhinha de pedofilia sadomasoquista: o jovem Hansel João alega ter sido mantido em uma gaiola, de onde a velha todos os dias verificava se o “dedinho” (termo infantil para designar o órgão sexual do moleque) ficava “gorducho”. Enquanto isso, também foi acusada, na versão dos dois, de explorar o trabalho infantil, pois Gretel Maria era obrigada a desempenhar as tarefas domesticas.

Por razões ligadas à visão patriarcal, que desconsidera o trabalho domestico um verdadeiro trabalho, esta acusação foi desconsiderada nos atos do processo...

Todavia: o preconceito está presente ao longo da versão oficial inteira. A senhora vivia isolada, sem apreciar particularmente as expressões do convívio humano, o que lhe rendeu má fama. Nunca agiu como “vovozinha”, pois ao que parece não teve filhos, por opção, mas somente gatos. Aliás, o grande numero de livros em sua residência revelam interesses outros, de natureza intelectual.

Os dois criminosos infanto-juvenis aproveitaram da escassa simpatia do povoado por ela, penetrando sorrateiramente na propriedade dela e matando-a. A verdade é simples, nua e crua. Para evitar suspeitas, os dois alegaram ter sido seqüestrados e obrigados a viverem em condições de semi-escravidão. Alegaram ter sido sexualmente abusados e que a morte da senhora teria sido, portanto, legitima defesa. Mas algo mostra que não foi assim. A velha podia não ser muito simpática, mas foi atacada duas vezes: sua casa foi vandalizada e, pior, ela foi brutalmente assassinada. Que a impunidade dos dois seja efetiva, se deve exatamente ao preconceito contra mulheres solteiras, não mais jovens e capazes de se virar sem homem para concertar o chuveiro ou plantar um prego na parede. Ainda, as pesadas insinuações sobre o fato da senhora abusar de menores, realmente não se sustentam: repito: trata-se de vitima de preconceito, pois gostava de mulheres, portanto não teria demonstrado qualquer interesse para dedinho algum do elemento. Simplesmente, não se encaixava nos papeis tradicionais de vovozinha.

Toda esta história não passa de um fato de crônica local sobre um assassinato brutal, em busca de dinheiro fácil, realizado magistralmente pelos dois, muito provavelmente sob a direção dos pais. Idéias antiquadas sobre a inocência das crianças e sobre senhoras que moram sozinhas tornaram a vítima dessa história uma bruxa malvada que atraiu, seduziu e devorou crianças inocentes. Isto diz muito sobre preconceitos ainda hoje...

quinta-feira, 4 de junho de 2009

BELLES DAMES SANS MERCI I.


Depois de ler o romance e assistir ao filme há muitos anos atrás, Jane Eyre ficou em uma pasta mental na cabeça, referência freqüente, pouco mais do que isso. Mas há não muito tempo atrás, zapeando noite adentro entre os canais pagos, em busca de South Park ou de alguma outra genial estupidez qualquer, aconteceu de assistir novamente ao filme em p&b com o grande Orson Wells no papel de Rochester e una Elisabeth Taylor criança/Bambi, de olhos disneyanos no papel da tuberculosa. E aí anotei umas coisas em minha caderneta, coisas que nunca se tornarão úteis na produção acadêmica, já que não tem lugar para elas na “área”. Porém, com sou uma pessoa que precisa extravasar extravagâncias, resolvi colocar na tela minhas anotações, quem sabe alguém tem alguma idéia do uso que posso fazer delas...

Jane Eyre é a pobre órfã modelo Dickens, que a tia cruel trata que nem a madrasta de Cinderela. Nessa parte da história, no romance tem aquela cena aterrorizante do quarto vermelho, onde Jane alucina, encontrando todo o catalogo de nossos medos infantis. Mas aí, a tia malvada a envia para um orfanato/reformatório, para “moças rebeldes”. Aqui as meninas são humilhadas pelo diretor e pelo corpo docente. Mas Jane não tem alma de ovelhinha não, portanto é ainda mais maltratada. Aí cresce, e se percebe que ela adota a postura desejada simplesmente como disfarce. No colégio, o diretor é cruel. Jane se submete para aprender um ofício e, assim que alcança a maioridade, publica um anuncio buscando um emprego como governanta: rejeita ser submissa às vontades do velho diretor sádico e sai para o mundo.

O mundo é um lugar perigoso para as moças jovens. No filme, Jane encara sem ceder o assédio na pousada onde a carruagem a deixa no caminho para a mansão dos Rochester, Thornfield, onde será governanta de Adele.

Chega em Thornfield, o ambiente é sombrio. Adele é uma criança/boneca, que já sabe seduzir. É destinada a se tornar uma Blanche Ingraham, que é uma jovem de fino trato, “de berço”, mas arruinada, atrás de um casamento com Rochester que, porém, a dispensa.

Jane se depara com o patrão pela primeira vez durante o famoso passeio no nevoeiro, quando o cavalo se assusta com ela. Ela é obediente, quando Rochester manda lhe entregar o chicote. Depois se enfrentam, e ela responde a todas as perguntas de maneira direta e franca. Não tenta seduzir nem baixa a cabeça.

Descobre-se que Rochester é casado com uma louca, que se dava a todos os prazeres e paga as conseqüências (sífilis? Será por isso que ela enlouqueceu? Por pudor só se alude...). Rochester a mantêm presa em uma torre da mansão, sob os cuidados de Grace Poole, a guardiã que a domina com a força bruta.

Há vários acontecimentos: o irmão da louca chega de surpresa e acaba ferido pela irmã. Rochester pede confiança a Jane sobre o segredo que não pode confiar-lhe. Se colocam em um plano de paridade, pois ela entra no jogo. Mas é, na verdade, um jogo de submissão constante: ele a força a permanecer na sala da festa, onde os amigos dele (e Blanche) falam mal de governantas como se Jane não estivesse presente. Ela sai e Rochester brinca com ela como um gato com um ratinho. O pior: mais ele faz isso, mais Jane se apaixona.

Um jogo é legal somente se ambos os jogadores estiverem jogando limpo. Rochester engana Jane, pois ela não sabe que ele é casado. Jane considera isso traição e vai embora. Sem referencias, não consegue emprego, dorme na rua, e acaba voltando para a casa da tia cruel, que no entanto perdeu o filho devasso e teve um derrame. Jane fica para cuidar, a velha é obrigada a submeter-se à moça, que parece uma Vingança Silenciosa: Jane impõe sua presença sobre a fraqueza da tia, ganhando assim um teto. Enfrenta dificuldades econômicas e, no entanto, Rochester a procura.

Jane vai ao seu encontro e descobre que ele ficou viúvo e, melhor ainda, precisa de alguém que cuide dele, pois ficou cego.

Jane domina. Xeque mate.

ANHANGUERA MON AMOUR: COMO TUDO COMEÇOU.


A primeira vez que dirigi pela SP 330 Anhanguera, tive que fincar os olhos no asfalto, enquanto repetia, como um mantra místico, “não posso dormir, não devo dormir, não posso, não devo”. Foi quando, de um dia para o outro, minha vida mudou de maneira rápida e inesperada. Era janeiro de 2003, domingo, 11, e eu tinha chegado da Itália na mesma manhã, depois de mais de trinta horas perdida entre aeroportos e aviões. Meia hora depois de minha chegada em São Paulo, às vésperas de um concurso, a infeliz criatura que morava comigo confessou, para alívio de sua própria consciência, que se apaixonou por outra. Lugar do concurso: a longínqua cidade de Ribeirão Preto. Lugar do qual se fala em termos politicamente corretos: boa qualidade de vida, cerveja de primeira, mas ao que parece, somente quem não pode evitar vai para lá. Não é exatamente um lugar cheio de atrativos turísticos: um clima infeliz, abafado, de cidade de mar sem mar, no meio de um mar de cana. Sinto muito, Dorothy, o Kansas é aqui mesmo... Meu batismo nessa nova vida foi realizado com a comemoração, logo na quarta feira, de minha aprovação no concurso, em São Paulo, na Vila Mariana, um belo boteco, simpático... e uma cachaça produzida em Ribeirão que, somando-se ao jet-lag, ao cansaço das provas e da viagem e às mágoas acumuladas desde minha chegada, me despachou sem paradas para meu encontro com uma almofadinha azul extremamente confortável, assento da privada mais simpática que já conheci, onde vomitei as tripas. Certo, nunca mais meu rosto encostou-se a ela, foram outras as partes que este assento conheceu, e sua graça se revelou na proximidade de pilhas de quadrinhos no bidê ao lado. Mas já estou em um desvio, e o caminho é longo, entre São Paulo e Ribeirão, extremos dessa jornada, a saída em Ribeirão é no Km 303, e ainda estou na Vila Mariana, vomitando tripas e alma com as faces acomodadas na almofadinha azul! Hora de voltar na estrada...

Minha viagem encontrou, no meio do Kansas brasileiro, o reino de Oz. De São Paulo a Ribeirão Preto o tempo é longo, e só existe uma atividade possível, além do exercício monótono de manter os 120 km/h no trecho São Paulo Campinas, os 100 entre Campinas e Limeira, e os 110 até Ribeirão: pensar. Com muito cuidado, porque a estrada é cheia de radares.

Mas ainda estou vomitando na Vila Mariana, um momento simbólico e antropologicamente significativo, ritual de passagem e lavagem purificadora. Ou, talvez, esteja em Paris, em um pequeno estúdio, lembrando tudo isso, tão distante e quente, no inverno francês.

Engraçado, olho Paris como olho a Anhanguera, com lentes totalmente surrealistas, aliás entendo perfeitamente porque os modernistas brasileiros redescobriram o Brasil através de Blaise Cendrars. Eu, também, sou estrangeira, e olho com olhos estrangeiros. Sou uma viajante, minha perspectiva é outra, treinei meus olhos para me surpreender com o corriqueiro. Olho para a Anhanguera depois de digerir William Least Heath-Moon, o maior descobridor de futilidades de viagem, que ensina que existem “maravilhas” escondidas nos milharais de um dos lugares mais boring do mundo: o Kansas. Um lugar tão horrendo que com freqüência as forças da Natureza tentam eliminar com tornados devastadores. Bom, no meu caso, o Kansas começa no km 150, logo depois do Shopping Limeira, do Graal Castelo e da Nestlé. Limeira é a última fronteira da civilização. Sobre Ribeirão ainda há dúvidas se pertence à Zona Neutra ou se os Romulanos dominam o pedaço. Admito que minha cultura inútil alimentou-se de seriados babacas, não somente de literatura, e haja paciência para encontrar todas as referências! Se eu tivesse um cartão de visita, coisa que não tenho, pois não suporto esta coisa horrenda, seria assim:

Fada de Preto

Especialista em Assuntos Gerais e Aleatórios,

Futilidades e Inutilidades.

Até Ribeirão, salvo na altura do parque Estadual de Vassununga (dois míseros quilômetros), há uma única coisa: um imenso, infinito e mortalmente igual campo de cana. De um ponto de vista oriental, de “transformação”, diria que esse campo muito, realmente muito vasto, é como o lodo do qual nasce o lótus: da cana nasce a cachaça e, acima de tudo, ao longo do último ano, também o combustível do meu carro. Tinha um que funcionava com a tradicional gasolina, mas os custos das guerras dos donos do petróleo acabaram pesando demasiadamente no meu bolso, então troquei por um carro alcoólatra, mais barato e, temo, menos eficiente.

Minha rodovia começa em São Paulo e acaba em Ribeirão Preto. Francamente, sua continuação, rumo Franca, Uberaba e Uberlândia e sei lá onde mais, não existe no meu mapa. Eu só sei que existe ali, até o km 303, às vezes 318. Depois é o nada, o vazio, a topografia está em branco. Por outro lado, alguns desvios me levam, às vezes, para lá de Sertãonzinho, ou para Buenos Aires, ou Paris, ou Milão. A Anhanguera, de fato, não é somente um espaço linear.

Deixo agora minha almofada, avisando que a viagem começa lá, onde uma placa azul avisa que “Aqui passa o Trópico do Capricórnio”, e me pergunto se Henry Miller teria chances, nos motéis da Anhanguera. Tem um que até faz marketing: “Vapt Vupt: 12.00 Reais”... Vai vendo....

quarta-feira, 3 de junho de 2009

HERODES’ FAN CLUB.



Uma vez, no trabalho, pediram doações de brinquedos para as barraquinhas da festa junina da empresa. Me perguntaram se ia participar da festa. Imaginando hordas familiares com alegres criancinhas brincando & gritando & tropeçando, me achei inadequada para tamanha empreitada e disse que, infelizmente, um compromisso religioso me impedia de participar, mas durante meu retiro espiritual dedicaria uma prece para o sucesso da festa.

Mas fui, comprar os brinquedos. Entrei na loja Medéia – tudo por 1.99 e me deleitei no meio de prateleiras cobertas por objetos de plástico:

1) Pacotes com dez cabeças de boneca, de vários tamanhos, todas sem cabelos.

2) Pacotes com torsos de vários tamanhos, todos sem braços, nem pernas, nem cabeças. Que estão na outra prateleira.

3) Pacotes de dez braços direitos de vários tamanhos.

4) Pacotes de dez braços esquerdos de vários tamanhos.

5) Pacotes de dez pernas direitas de vários tamanhos.

6) Pacotes de dez pernas esquerdas de vários tamanhos.

7) Pacotes de fios de naylon colorido em loiro/moreno/ruivo. Para colocar nas cabeças.

Muitas prateleiras. Havia também centenas de: tiaras de latão e plástico brilhante, pulseiras de latão e plástico brilhante, anéis de latão e de plástico brilhante. Ainda, prateleiras de luminárias “étnicas”:

a- Africana. Uma mulher negra com uma/duas crianças de barriga proeminente. Faz parte do ideário sobre África dos produtos Made in China importados via Paraguay. Não dá para levar em uma festa junina. Peitos de fora e crianças, em festa familiar, não combinam. Ainda que se trate de uma mãe etnicamente correta. Os retratos da fome, todavia, são inquietantes.

b- Asiática. Uma geisha de quimono e sombrinha. As geishas não têm filhos nem tetas de fora. Porém, podem parecer um pouco licenciosas, como prêmio em festa junina.

c- Rom. Com semblante de cigana de Notre Dame. Não se parece com as Rom das periferias italianas, as nômades sujas e maltrapilhas que agarram tua mão para grudar infaustos destinos em tua cabeça. Na época dos antigos romanos, descobri, essa atividade era típica de jovem moças judias. Os Rom não ficam bem em festas com crianças: conta a lenda que as roubam. As crianças, digo. Então, Esmeralda fica na prateleira.

As outras etnias faltam na loja Medeia. Talvez uma mãe judia por 1.99 não se encontre facilmente.

Encontro, finalmente, as prateleiras de brinquedos. Todos rigorosamente sem selo Inmetro. Têm pacotes de tanques, de carrinhos, de bonequinhas minúsculas. Todos os brinquedinhos apresentam partes que podem furar os olhos; que podem ser ingeridas; que podem provocar danos. Alguns brinquedos, como aqueles potes de meleca verde víscida, contém substâncias tóxicas.

Perfeito.

Compro cinco brinquedos: um pacote de tanques minúsculos e com a ponta do canhão quase afiada; uma arma de plástico; um set de chá para bonecas com pratinhos pequeninhos. Um arco com flechas; a reprodução de um tubarão verde. SIC!

No dia seguinte, entrego minhas doações. Suspiro e sorrio, dizendo que pena, não poder vir, deve ser gostoso! Penso que é muito legal, ser membro do Herodes fan clube.