terça-feira, 24 de agosto de 2010

O CÁOS, NICK CAVE E A ENCICLOPÉDIA

Time to stop. Tempo de parar um pouco meus chatos relatos de uma viagem que já era. Ainda que, logo, chegue a Mongólia.
Mas preciso fazer uma pausa. Nos dias que se passaram, nas últimas semanas, houve eventos que me deixaram pasma. Cansada. Como, por exemplo, descobrir que o que imaginava ser ruim é muito pior. Foi uma descoberta e tanto. No dia em que isso aconteceu, uma sexta feira, cheguei em casa, à noite. E resolvi ter um surto histérico: cai na frente da privada e comecei a vomitar. Pensava nas coisas ruins, e vomitava. Depois, pensava de novo, e vomitava. Foi uma verdadeira catarse. Uma purificação que começou pelo meu âmago: desde as tripas para fora. Depois, foram dias entre altos e baixos do espírito. Ando precisando de um curso rápido de "motivação" para não me deixar tentar por um brilhante futuro de "encostada".
No meio de tudo isso, me deparei com um livro simplesmente M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O.
Não, não um livro de auto-ajuda.
Não um livro alegre, nem cheio de esperança.
Na verdade, um livro que é todo o contrário disso.
Um livro sobre um alcoólatra estuprador. Cuja esposa se suicida. E que no final morre.
Trata-se de um pequeno romance de Nick Cave.
Nick Cave é um cantor australiano, daqueles "malditos". Começou como desafinado e continua escolhendo desafinar. Suas letras desandam no grotesco. Não esconde ser um alcoólatra.
E escreve livros.
Bons livros.
Ótimos livros.
Livros grotescos.
Como esse que me encontrou: A morte de Bunny Monroe.
É a história de um caixeiro viajante inglês que vende produtos de beleza para donas de casa frustradas. Ele se acha "O SEDUTOR". não passa de um estuprador nojento. A esposa se suicida. E ele, perseguido pelo fantasma dela (será o efeito do delirium tremens...), leva o filho em suas voltas comerciais, deixando-o a espera no carro, um Punto amarelo, enquanto tenta suas cantadas baratas, apanha, estupra, se acaba.
O filho, nesse caos todo, acredita que o pai é um ser excepcional, maravilhoso, o ama muito, o admira, se orgulha dele. Mas o caos só aumenta.
E a ordem que a criança encontra está escondida... nas páginas de uma enciclopédia, que ele leva consigo. Uma enciclopédia que a mãe lhe dera de presente e que ele lê com afinco, absorvendo todos os conhecimento nela contidos.
Até o trágico desfecho, antecipado por uma visão infernal do pai, um verdadeiro delírio, antes de morrer, por um acidente de carro.
E o caos faz com que a enciclopédia fique abandonada, na rua, encharcada pela chuva.
Sei lá... amei esse livro. Sugiro acompanhar sua leitura com a trilha sonora certa: o próprio Nick Cave (o CD Your funeral my trial serve bem, com pitadas de Murders Ballads, principalmente em dupla com p.j. harvey & Kylie Minogue). Nos intervalos, sugiro "relaxar" com Antony & the Johnsons...
Boa leitura, se quiserem encarar... Vale a pena!
P.S. Ouvir Morphine também serve!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

DIÁRIOS DE VIAGEM VI

A praça Garibaldi em Vada.

04/07/2010 Vada, h.19.4o
Voltei há pouco da praia. De manhã fiquei um pouco com meus pais, lendo, debaixo do guarda sol. Depois, fui até a praia vizinha, visitar minha amiga S., que conheço desde que tinha seis anos. Passamos muitos verões juntas, nadando, caçando caranguejos, catando amoras, enfim, sendo crianças juntas e crescendo. Juntas, descobrimos o mundo. A história de S. é uma história de abandono & perdas. Ela e seus três irmãos foram abandonados pela mãe uma noite, quando ela tinha três anos. A mulher , simplesmente, foi embora, deixando a chave do gás aberta. Por sorte, o pai acordou a tempo. Como o pai era uma figura lastimável, e S. afirma, até hoje, que foi a ruína de sua vida, quem se ocupou dela foram os tios, que desde que foi abandonada atee os doze anos a criaram como uma filha. Mas aí, o tio morreu e o pai a tomou de volta, para que morasse com os irmãos. Na verdade, ela tinha uma idade que permitia que cuidasse da casa e dos irmãos, poupando ao pai a grana de babás e faxineiras. Foi quando nos perdemos de vista por vários anos.
Com dezenove anos, ela voltou para a casa da tia e acabamos nos encontrando de novo, nos verões. Mas tínhamos, obviamente, mudado, cada uma ocupada em descobrir o que fazer com a vida de quase-adultas.
Hoje, ela é casada e mãe de dois filhos. Conversamos um pouco, e ela, como eu, apesar dos anos e das muitas diferenças, guarda lembranças importantes do período de formação que passamos juntas, durante aqueles verões maravilhosamente ingênuos de descobertas.
Os irmãos, que cresceram com o pai, não se deram bem na vida. O menor casou com uma deprimida crônica, tem dois filhos e trabalha em um supermercado. Vai ver procurou a figura da mãe nessa esposa que nem consegue cuidar da prole. O mais velhos sobrevive de pequenos trabalhos absolutamente precários, com quarenta e tês anos, namorando uma figura que, conforme diz S., além de feia é mau caráter. O terceiro irmão, que é gêmeo dela, está preso, na cadeia, por jogo de azar, fraudes & furtos.
S. trabalha como agente imobiliário, mas está preste a deixar tudo para só se ocupar dos filhos, de oito e seis anos.
Conta que sempre quis filhos, mas que teve momentos em que se sentiu muito inadequada, com medo de ser como a mãe dela fora. Conta também que, com vinte e cinco anos, a mãe reapareceu, querendo encontrar todos eles. mas S. não quis nem vê-la pintada, pois considera que, para essa mulher que só a machucou, seria um privilégio imerecido conhece-la.
A vingança machuca, a vingança faz mal, creio eu para todos os lados.
Me despedi dela e fui para casa, almoçar.
Andei pensando que, em minha vida, muitas são as histórias de pessoas que cruzaram parte de seus percursos comigo, em que o abandono & a perda familiar são recorrentes. Cogito se não é já o tempo de escrever essas histórias.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

DIÁRIOS DE VIAGEM V


01/07/2010 Vada, h. 22.30.

Estou no quarto da casa que era dos meus avós. a janela aberta, um perfume leve de maresia. Como sempre, a sensação de que os lençóis são mais pesados, nesse "ar marinho".
Hoje, de manhã, revi uma amiga de um milênio atrás, de quando eu era (éramos?) muito jovem. Com ela fui ao meu primeiro show ao vivo, U2: era o ano em que lançaram WAR, o público cabia inteiro em uma tenda de circo... Eu tinha o que? 15 ou 16 anos, não mais do que isso. Bom, então, depois de um milênio de vida, nos reencontramos e fomos passear por aí, sem botar a conversa em dia mais do que o necessário, mas conversando de amenidades musicais e literárias. Levei-s até o palacete Eucherio San Vitale, do século XV, no Parque Ducal. Eu sei que a maioria dos moradores da cidade não sabem que está aberto ao público, com seus afrescos já quase apagados. E sei que é um lugar de boas energias.
Conversando de arte, música & espetáculo, levei-a para (re)ver o arco do portal da catedral, decorado com um calendário medieval.
Eu gosto do mês de dezembro, que mostra a matança do porco. Sei que poucas pessoas reparam nesse detalhe, que representa um dos primeiros "monumentos ao porco" que, a bem ver, estão minuciosamente espalhados pelas catedrais da Europa inteira. Na Idade Média, o porco deu o que comer a milhões de famintos. Grande porco: praticamente, não precisava de cuidados, comia qualquer coisa por aí, era resistente, e dele "não se joga fora nada". Vejo, nesse baixo-relevo de Antelami, uma homenagem grandiosa: afinal, todos que entravam (e entram) por esse portal que é, repito, aquele central, tinham que reconhecer que o porco estava acima deles!
O interior da catedral é, como sempre, uma grande visão, até a extraordinária cúpula do Correggio.
Mas eu gosto é de um capitel quase invisível: aqui, está esculpido um burro vestido de monge, que ensina a ler a um lobo... Amo esse capitel, todas as vezes que volto para Parma, faço questão de ir vê-lo.
Pequenos detalhes que, para uma pessoa um pouco anarco-surrealista como eu fazem um sentido profundo.
(A foto do portal é minha, a do capitel não é minha, foi "roubada" via google)

DIÁRIOS DE VIAGEM IV


30/06/2010. Parma, h. 23.50.
Ontem, na tarde, fiquei em casa recarregando os milhões de baterias que a gente carrega consigo nesse mundo digital:
- duas da câmera digital
- uma da filmadora
- uma do e-book
- uma do celular
- uma do I-Pod
... fala sério!
À noite, mamãe cozinhou camarões gigantes.
Hoje sai, de manhã, e uma energia misteriosa me arrastou para a livraria, obrigando-me a comprar livros...
À noite, fui para Cremona, onde jantamos em um boteco restaurante: "torta frita" com frios e, de sobremesa, "torta frita" com Nutella. O colesterol ficou todo alegre!
Nutella: uma religião ou um vício? Há anos os intelectuais italianos discutem sobre isso....
Foto: torta fritta & frios.


quinta-feira, 5 de agosto de 2010

DIÁRIOS DE VIAGEM III: ANEXO


A foto do último post foi tirada de uma das pontes de Parma. Essa, não, é da rede, mas da na mesma: representa a última moda entre os adolescentes que, no enloquecimento dos tempos pós-pós-pós atômicos/industriais não sabem muito bem que rumo dar a suas vidas. O culpado dessa última bobeira é um pseudo-escritor de romances de amor, tal de Federico Moccia, a ser evitado feito uma praga. Bom, então, os cadeados que se encontram em muitas das pontes de muitas cidades SERIAM o símbolo do amor eterno entre os adolescentes. Aqueles amores, para ser clara, que na maioria das vezes são eternos por um prazo de dois/três meses. Mas os cadeados ficam aí, enferrujando, nos lembrando de como é difícil crescer e entender um pouco mais o funcionamento das "coisas da vida".

DIÁRIOS DE VIAGEM III

29/07/2010 Parma. h. 12.30
Primeiro passeio pela minha cidade. Em exploração das permanências & transformações. Ontem cheguei que já era noite e, pelo cansaço, não fiz esforço nenhum para olhar em volta. Mas hoje, sim. Sai que eram umas 10.30, já que levantei quase às 10. O fuso horário de cinco horas tem lá sua influência.
Então, sai. A temperatura, ainda que verão, é aceitável, abaixo dos 30 graus. O céu está azul e cheio de andorinhas. Sinto falta das andorinhas e de seus gritos, lá em Black Stream. Na cidade, poucas são as mudanças visíveis, pelo menos no caminho principal para chegar ao centro. Algumas obras de reforma nas ruas, o mercado, que está ficando muito esquisito: havia lindas casas coloridas. Ainda estão lá, porém sua visão está impedida por uma misteriosa estrutura de vidro & aço, cuja função ninguém soube me explicar qual vai ser. Sumiu uma das lojas de conveniência mais antiga, a COIN, que foi transferida. Fora isso, tudo aparenta continuar do mesmo jeito.
Primeira parada: uma livraria tipo "clube do livro", ótimos descontos, comprei vários livros de literatura de entretenimento.
Segunda parada: a livraria Feltrinelli, onde não há descontos, mas é aqui que abasteço minhas reservas de ensaios.
Comprei um livro da Anna Politovskaya, a jornalista russa morta a tiros por incomodar o regime putiniano. Não há nada dela publicado no Brasil. Também comprei um belo ensaio sobre as relações entre arte e ciência e outro, de literatura "quase" de viagem, de Alain de Botton: é uma crônica que me pareceu interessante, sobe uma semana que o autor passou dentro de um aeroporto.
Tive outras tentações "literárias", mas preciso ir devagar, parcelar o tempo nesse ofício delicioso que é escolher os livros para levar embora.
Voltei para casa, sempre andando, e agora vou almoçar. Pretendo passar minha tarde abandonada no sofá, lendo meus livros...

DIÁRIOS DE VIAGEM II

28/07/2010 No avião. h. 15.05
O pesadelo da última hora me encontrou. Estava eu tranquila, fazendo a fila para embarcar, quando um bando de italianos berrantes me cercou. A média da idade: acima dos 80. Todos beatos e abençoados por alguma peregrinação religiosa (Fátima, com certeza...). Todos, como disse, beatamente berrando. Todos, sem exceção nenhuma, nessa beatitude complexa que é a fé popular, reclamando. Reclamando porque
- o avião não podia ser alcançado a pé, mas precisou pegar aquele ônibus de transporte interno do aeroporto
- o calor, ahiahiahiahi! o calor do verão! (mas para os beatos, isso não deveria ser algo divino????)
- A espera dentro do ônibus chegou aos 10 (DEZ!) minutos, onde já se viu? (como se a Itália fosse o lugar da eficiência, FALASSSÉRIO!)
TODOS, como um bando de ovelhas sem rumo, com um pastor cabisbaixo, padre silencioso e abatido (péssima liderança pastoral, em todos os sentidos, tsé...).
No meio desse pesadelo de última hora, dois mini-pesadelos assinados "Europa do século XXI":
1) No controle do cartão de embarque, duas pessoas foram paradas e colocadas de lado, e pelo que vi não conseguiram embarcar. Duas pessoas negras. Uma, eu vi, tinha passaporte italiano. Pelo jeito, de nada valeu. Oh, racismo, filho do medo, filho da p..a! Antes, tinha visto, no controle de raios X das malas, que o único que teve que parar e abrir suas coisas fora um passageiro também negro.
2) Segundo mini-pesadelo: enquanto esperávamos para descer do ônibus, um moleque começou a passar mal. Isso, fora o estado lastimável do coitado, ao qual vai toda minha simpatia e solidariedade, seria o de menos... Foram os renovados berros dos beatos, a parte pior. Gritos que ficaram ecoando no pequeno espaço do ônibus, em tons de briga, contra o pobre motorista que, no estado de sítio constante em que se colocam os aeroportos, não pode abrir as portas até ser autorizado. Beatos os que sempre querem tudo & agora, beatos os que sempre levam tudo como uma ofensa pessoal, beatos os pobres, muito pobres de espíritos, que os torna impacientes na vida... Um pensamento molesto toma conta de mim:
será que eu também sou assim???? Eu não quero ser assim... Faço minha "promessa de avião": vou me esforçar para não ser assim...

DIÁRIOS DE VIAGEM I

(Parma, Itália: Praça Giuseppe Garibaldi)
Leio sempre os comentários, às vezes com uma certa surpresa. Por exemplo, no meu último post, encontrei alguém que me sugeriu ir à Europa. Tranquilo, Pietro, vou à Europa com uma certa regularidade. Aliás, para mim, sendo eu uma Fada européia, nada mais é do que uma volta às origens. Para quem não soubesse, sou de origem mediterrânea, fada importada há 15 anos em terras Brasil-Americanas.
É emblemático da constituição da mentalidade observar o "espírito brasileiro" sobre a idéia do que é interessante visitar. Historicamente, me ensinaram, no Brasil se desenvolveu uma idéia de "civilização", no século XIX, que leva a um certo contraste com as imensas extensões de mata que cobrem o país.
A idéia de civilização é, ainda hoje, moldada em certo gosto "velho mundo" de oposição cidade/natureza, em que o ideal urbano conquista as almas brasileiras. Nenhuma surpresa, nisso. Só que, como disse, eu nasci, no "velho mundo". Aliás, meu país, longo, estreito e com uma presença "capilar" de cidades, cidadezinhas & vilarejos, é uma das metas do turismo internacional privilegiadas, exatamente por sua rica e linda história da arquitetura & do urbanismo. Assim, para mim, em contraste com isso, que é parte constitutiva de minha cultura e história, torna-se atraente a idéia da "grande fronteira", do horizonte sem limite, do espaço que, no limite, aparenta o vazio das marcas humanas.
E, diga-se de passagem, a Europa está um pouco decadente, em termos humanos. Meu país, constato com tristeza, vive "de renda" há quase 500 anos. Depois da grande praça de São Pedro, realizada na primeira metade do século XVII, apareceu o "bloqueio do antigo": nada mais foi feito, a criatividade estancou e o país, dominado ao longo de séculos pelos estrangeiros, fossem eles espanhóis ou austríacos, esgotou suas capacidades de "preservar vivendo sua atualidade" e só foi explorando por aquilo que já existia. Que não é pouco, certo.
Aliás, coisa interessante, o Estado Nação, em meu país de origem, é mais novo do que o Estado Nação brasileiro. Com efeito, o Brasil é de 1822, enquanto a Itália é somente de 1860. E são fortes as pressões separatistas, muito fortes, mas isso não aparece na imprensa brasileira e poucos sabem disso por aqui.
Mas não quero falar de Itália, talvez porque a leitura quotidiana dos jornais online me deixa pasma, entristecida e preocupada. Vamos mesmo falar de viagens em lugares que, para mim, fada européia (não tem mérito nisso, só o acaso do nascimento), representam, sim, o exótico distante....
Durante minhas viagens costumo manter cadernetas com as anotações do que fiz & vi. Vai, aqui, uma seleção do que fui anotando a caminho para e de volta da Mongólia (incluindo, assim, minha parada européia...). Dedicado a quem gosta de "viajar"...
Lisboa, 28/06/2010. Aeroporto. h. 14,30
Esperando embarcar para Milão. Última parte da viagem para começar minhas férias. Estou preste a encontrar meus pais. Se tudo der certo, iremos mesmo para a Mongólia. Tenho o desejo de que seja uma grande viagem. Tenho o temor de que possa ser a última dessa natureza "radical" com eles. Quero dizer que o tempo passa e ninguém fica mais jovem. Pensamentos nefastos, como nefasto é pensar, agora, no lugar de trabalho. Oh, Coisa inútil! Mas é bom anotar, mesmo assim. Colegas que chegam, colegas que vão embora. Hora de embarcar....