quinta-feira, 4 de junho de 2009

ANHANGUERA MON AMOUR: COMO TUDO COMEÇOU.


A primeira vez que dirigi pela SP 330 Anhanguera, tive que fincar os olhos no asfalto, enquanto repetia, como um mantra místico, “não posso dormir, não devo dormir, não posso, não devo”. Foi quando, de um dia para o outro, minha vida mudou de maneira rápida e inesperada. Era janeiro de 2003, domingo, 11, e eu tinha chegado da Itália na mesma manhã, depois de mais de trinta horas perdida entre aeroportos e aviões. Meia hora depois de minha chegada em São Paulo, às vésperas de um concurso, a infeliz criatura que morava comigo confessou, para alívio de sua própria consciência, que se apaixonou por outra. Lugar do concurso: a longínqua cidade de Ribeirão Preto. Lugar do qual se fala em termos politicamente corretos: boa qualidade de vida, cerveja de primeira, mas ao que parece, somente quem não pode evitar vai para lá. Não é exatamente um lugar cheio de atrativos turísticos: um clima infeliz, abafado, de cidade de mar sem mar, no meio de um mar de cana. Sinto muito, Dorothy, o Kansas é aqui mesmo... Meu batismo nessa nova vida foi realizado com a comemoração, logo na quarta feira, de minha aprovação no concurso, em São Paulo, na Vila Mariana, um belo boteco, simpático... e uma cachaça produzida em Ribeirão que, somando-se ao jet-lag, ao cansaço das provas e da viagem e às mágoas acumuladas desde minha chegada, me despachou sem paradas para meu encontro com uma almofadinha azul extremamente confortável, assento da privada mais simpática que já conheci, onde vomitei as tripas. Certo, nunca mais meu rosto encostou-se a ela, foram outras as partes que este assento conheceu, e sua graça se revelou na proximidade de pilhas de quadrinhos no bidê ao lado. Mas já estou em um desvio, e o caminho é longo, entre São Paulo e Ribeirão, extremos dessa jornada, a saída em Ribeirão é no Km 303, e ainda estou na Vila Mariana, vomitando tripas e alma com as faces acomodadas na almofadinha azul! Hora de voltar na estrada...

Minha viagem encontrou, no meio do Kansas brasileiro, o reino de Oz. De São Paulo a Ribeirão Preto o tempo é longo, e só existe uma atividade possível, além do exercício monótono de manter os 120 km/h no trecho São Paulo Campinas, os 100 entre Campinas e Limeira, e os 110 até Ribeirão: pensar. Com muito cuidado, porque a estrada é cheia de radares.

Mas ainda estou vomitando na Vila Mariana, um momento simbólico e antropologicamente significativo, ritual de passagem e lavagem purificadora. Ou, talvez, esteja em Paris, em um pequeno estúdio, lembrando tudo isso, tão distante e quente, no inverno francês.

Engraçado, olho Paris como olho a Anhanguera, com lentes totalmente surrealistas, aliás entendo perfeitamente porque os modernistas brasileiros redescobriram o Brasil através de Blaise Cendrars. Eu, também, sou estrangeira, e olho com olhos estrangeiros. Sou uma viajante, minha perspectiva é outra, treinei meus olhos para me surpreender com o corriqueiro. Olho para a Anhanguera depois de digerir William Least Heath-Moon, o maior descobridor de futilidades de viagem, que ensina que existem “maravilhas” escondidas nos milharais de um dos lugares mais boring do mundo: o Kansas. Um lugar tão horrendo que com freqüência as forças da Natureza tentam eliminar com tornados devastadores. Bom, no meu caso, o Kansas começa no km 150, logo depois do Shopping Limeira, do Graal Castelo e da Nestlé. Limeira é a última fronteira da civilização. Sobre Ribeirão ainda há dúvidas se pertence à Zona Neutra ou se os Romulanos dominam o pedaço. Admito que minha cultura inútil alimentou-se de seriados babacas, não somente de literatura, e haja paciência para encontrar todas as referências! Se eu tivesse um cartão de visita, coisa que não tenho, pois não suporto esta coisa horrenda, seria assim:

Fada de Preto

Especialista em Assuntos Gerais e Aleatórios,

Futilidades e Inutilidades.

Até Ribeirão, salvo na altura do parque Estadual de Vassununga (dois míseros quilômetros), há uma única coisa: um imenso, infinito e mortalmente igual campo de cana. De um ponto de vista oriental, de “transformação”, diria que esse campo muito, realmente muito vasto, é como o lodo do qual nasce o lótus: da cana nasce a cachaça e, acima de tudo, ao longo do último ano, também o combustível do meu carro. Tinha um que funcionava com a tradicional gasolina, mas os custos das guerras dos donos do petróleo acabaram pesando demasiadamente no meu bolso, então troquei por um carro alcoólatra, mais barato e, temo, menos eficiente.

Minha rodovia começa em São Paulo e acaba em Ribeirão Preto. Francamente, sua continuação, rumo Franca, Uberaba e Uberlândia e sei lá onde mais, não existe no meu mapa. Eu só sei que existe ali, até o km 303, às vezes 318. Depois é o nada, o vazio, a topografia está em branco. Por outro lado, alguns desvios me levam, às vezes, para lá de Sertãonzinho, ou para Buenos Aires, ou Paris, ou Milão. A Anhanguera, de fato, não é somente um espaço linear.

Deixo agora minha almofada, avisando que a viagem começa lá, onde uma placa azul avisa que “Aqui passa o Trópico do Capricórnio”, e me pergunto se Henry Miller teria chances, nos motéis da Anhanguera. Tem um que até faz marketing: “Vapt Vupt: 12.00 Reais”... Vai vendo....

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