segunda-feira, 29 de junho de 2009

A VINGANÇA DE EVA. CAPÍTULO II



Mas eles continuavam sem sexo. E o teu corpo, moldado na matéria mais vil e inerte, a lama, clamava por outras satisfações que as pobres criaturas nobres não podiam realizar. De novo, você foi reclamar com o Pai. Como ele respondeu que você já teve uma chance e não deu certo, você argumentou com ele com as habilidades recém adquiridas dos anjos: aquele linguajar habilidoso que convence com elegância. Você se tornara muito bom, com as palavras. O Pai sorriu indulgente e cedeu, ao filhinho mimado, mas tão inteligente, tão bom de logos, que se parecia mesmo, nisso, com Ele. O Pai é vaidoso, fica se regozijando na confirmação de suas habilidades, em ato de eterna congratulação consigo mesmo. Enfim, não é por isso que criou as hierarquias mais altas de alados? Afinal, o que mais os serafins ficam fazendo? Emanações que ficam bajulando pela eternidade o Pai e sua criação. Vai vendo, cada um se diverte como pode! Você, se parece com ele nisso, também. Têm mesmo lados da criação “à imagem e semelhança Dele” que deram certo. Ah! Triste cegueira, essa dos pais! Nunca se sabe se eles desviam o olhar sobre os aspectos ruins do caráter de seus filhos por preguiça, por descaso o porque preferem fingir que o que viram foi engano, seus filhinhos não são assim.

A cegueira da paixão do criador por sua criação: sabemos que é imperfeita, mas gostamos de acreditar que não o é. Lembre-se de quando, depois, você não quis enxergar os problemas de ciúme entre os gêmeos. Depois ficaram me xingando secula secularum por ter criado o primeiro criminoso.

Adão: nossa vida selou o destino humano. Tudo, a partir de nós, se tornou uma infindável soap-opera. Inclusive com os mortos que voltam. Mistérios da fé. Uma soap-opera para alegrar o Diretor? Velha teoria: então o Pai seria uma senhora aposentada que passa o tempo inteiro no sofá rindo, chorando e torcendo para a telinha da tevê.

Se assim é, então no roteiro o Pai pensou em uma solução aparentemente definitiva para tornar inesgotáveis as variações sobre o tema de suas ontologias: uma nova companheira para satisfazer as necessidades da tua lama.

O Pai era inteligente, e entendia que essa criatura tinha que ser geneticamente compatível. Te anestesiou, retirou as células estaminais, manipulou um pouco para que fosse fêmea, porque você resolveu ser heterossexual, e quando você acordou, lá estava eu. O Pai ficou satisfeito, você agora tinha um brinquedinho novo. Aos olhos dele eu nunca passei muito disso, nunca me amou como ama você. Não tem jeito, por quanto possa ter me esforçado, nunca mereci muito mais do que um afeto distraído. Enfim, em tudo isso, lá estava eu, com tuas mesmíssimas habilidades, pois era você na essência da matéria. E não só isso: era você porque as habilidades que os anjos te ensinaram eu as absorvi com a própria essência vital retirada de você, também faziam parte de mim. Não sei se o Pai fez isso de propósito, para me dar alguma chance ou se, cegado pelo furor criador, acabou esquecendo desse particular. O que vi foi que você acreditava possuir, agora, o brinquedo perfeito, algo que podia tratar como bem entendesse, mas ao qual não devia satisfação qualquer, nunca. Você pensou, e pensou muito errado, que eu era sua propriedade, uma mulher submissa que não enchia teu saco, a tua disposição sempre e para a satisfação de todas as tuas exigências.

Eu, recém criada, vi que você era mais alto, mais forte e, por ter nascido antes, mais experiente e, ingênua, me dispôs a aprender. E aprendi logo, sim, senhor.

Aprendi logo que era melhor ficar calada. A primeira vez que você ficou irritado foi quando eu perguntei alguma coisa, sei lá o que, acho que era algo sobre o nome que você dera à girafa. Isso mesmo. Você estava de lua, levou a mal minha pergunta, virou enfurecido e me mandou calar a boca. Assustada, perguntei por que, e você me deu um empurrão, me virou e me deu um murro nas costas que me tirou o fôlego. Você mostrou o que achava mesmo, que era o meu dono e podia me tratar que nem os bichos em volta. Eu fugi, chorando, implorando pela ajuda do Pai, mas ele estava muito ocupado estudando suas novas invenções, buracos negros, anãs brancas e gigantes vermelhas. Não tinha tempo para essa criatura que criara para satisfazer os caprichos do filho. Então, me escondi no meio das árvores, onde adormeci, com o soluço preso entre a garganta e o peito. Estava ainda com os olhos molhados de pranto, quando acordei. Não tinha ninguém, literalmente, a quem recorrer. Não tinha ninguém, fora você. Que estava me procurando, porque me ver apanhar, chorar e fugir despertara teus sentidos. Quando você me encontrou, me retrai. Você tentou me amansar com palavras gentis. Pediu desculpas mil vezes. Se ajoelhou na minha frente. Deu cambalhotas para mostrar que não tinha nada a temer. E colheu uma flor para por entre meus cabelos. Falso.

Minhas costas doíam pelo murro recebido. Estava com tanto medo que me retrai de você. Depois, você perdeu novamente a paciência e me agarrou pelos cabelos, puxando com força.

Me jogou no chão e me estuprou, como um animal.

Depois, deitou ao meu lado e me contou o que tinha acontecido com a Outra.

Aquela que não obedecia. Disse que se eu não quisesse acabar como ela, sofrendo lá fora, sozinha com os demônios, devia me submeter, obedecer e ficar calada.

Daquele dia em diante, aprendi a agradar. Sorria, ainda que meu rosto ficasse doído em uma careta contraída. Deitava quando você mandava e respondia somente quando perguntada.

Virei a mulher modelo.

Você estava muito, muito satisfeito. Vez ou outra o Pai passava por aí e te perguntava como iam as coisas e você, muito feliz e à vontade, respondia que se sentia em um Verdadeiro Paraíso. Melhor não podia ficar. Você dizia que só tinha a agradecer por sua vida maravilhosa. O clima era perfeito, a comida farta, a mulher gostosa, obediente e disponível.

O Pai também me perguntava como iam as coisas. Teus olhares eloqüentes atrás dele tornavam minhas respostas aquelas desejadas. Um mundo perfeito. O teu mundo. A outra metade, a minha, era parte da perfeição alheia, a tua, sem gozar da própria. E, acima de tudo, sem esperança de mudar a situação nunca e jamais. Certo, havia momentos em que as coisas não iam tão mal, momentos de certa maneira agradáveis. Mas quando eu saia da linha, eis que tua mão caia pesada.

Foi por isso, meu bem: você nunca se perguntou que vida de merda eu levava, pois a tua era perfeita. E eu, sem alternativa. Pelo menos, assim acreditava. Até que um dia ela entrou, disfarçada.

Você não gostava de todos os animais que nos cercavam. Resultados das brincadeiras do Pai, havia de tudo, de mamíferos a répteis. E desses, em particular, você tinha asco. Sabe-se lá porque, o fato é que você sempre teve uma idiossincrasia com esses bichos. Também não estão entre os meus favoritos, mas eu tenho asco bem maior das pombas, aves nojentas que cagam e esvoaçam próximas demais. Enfim, quando tinha uma cobra ou um calango por perto, você caia fora. E foi assim, que ela entrou e se aproximou de mim: porque você não estava por perto para me vigiar.

A primeira vez você viu a cobra se aproximando, levantou e me disse que ia contar os carneiros. Eu sabia que isso significava que logo você adormeceria e dormiria por algum tempo. Quando você conta carneiros não agüenta muito. Catar coquinhos, por outro lado, te apaixona, eu acho que é uma grande asneira, mas como você se deleitava em faze-lo, eu frequentemente te convidava a ir catar coquinhos, rindo secretamente de tua estupidez. Darling, demorou anos, antes de você perceber que eu estava te xingando! Então: você viu a cobra e foi embora. Eu fiquei deitada à sombra da laranjeira, chupando laranja, feliz em te ver ir embora. Estava entediada. Tinha tanta coisa que queria saber, conversar, e a nulidade que você representava ao meu lado estava satisfeita, obrigado, quero continuar tão besta como era no primeiro dia. E aqueles tesouros que os anjos te ensinaram, que eu possuía na carne que o Pai tirou de você permaneciam em mim sem expressão, como uma pressão, uma opressão dolorida na barriga. Como depois diriam as gentes: quem tem pão não tem dentes. Os anjos não falavam comigo como com você, pois também tinham se acostumado a me ver como teu apêndice, teu brinquedo de estimação, tua propriedade. Todos estavam convencidos que minha mansidão, minha submissão eram inatas ou, como diriam em outros momentos, genéticas. Que minha docilidade decorria da mão habilidosamente criadora do Pai. Somente eu sabia que era tudo uma grande mentira e, para falar a verdade, estava muito cansada desse Inferno em que o Pai e você me colocaram. Qualquer coisa, para fugir.

E ela entrou e rastejou na grama, e se enrodilhou ao meu lado. Fiquei parada, para não incomodá-la. Observei suas escamas, brilhantes, coloridas, luzentes sob o sol. Eu, como você, tinha a faculdade de falar com os animais. Raramente a usava, pois você se incomodava, seu egoísmo lingüístico se tornara vaidade fútil do “eu posso ordenar que você não faça”, e eu obedecia na frente de você, que estufava o peito. Mas quando estava sozinha, tomava minhas liberdades e conversava com o que eu queria. Elogiei suas cores e brilhos, e ela pareceu satisfeita com minhas palavras, ondulando de leve a cabeça e mostrando a língua vibrante. Levantei a mão para acariciá-la e ela se estirou, apoiando a cabeça sobre minha perna. Ficamos assim um tempo, ela apoiada, eu acariciando-a. Em algum momento meus sentidos devem ter se confundido, quando percebi que estava cercada por um nevoeiro sutil, quase material, inédito na paisagem conhecida. E o que estava acariciando era a cabeleira de uma moça da minha idade, com os mesmos meus traços no rosto. Minha mão tremeu indecisa e ela abriu os olhos. Os meus. Era como me olhar em uma poça de água, pois seu rosto parecia flutuar em ondas leves. Me olhou e sorriu. Sorri. Sabia muito bem quem era. Estava feliz. Tinha me encontrado.

3 comentários:

  1. OMG!! Muito divertido!! ^^-
    No momento não tenho palavras para descrever o que se passa em minha mente! Uma mistura de orgulho e conflito!!
    MAchista, com sou, me divertir, orgulhar e ansiar por um folhetim como esse é , no mínimo, contraditório!!
    E novamente, as palavras dessa Fada me mandam para o divã!!!

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  2. Querida a.k.a Kushina, segue uma pequena amostra dos melhores autores de folhetins & literatura sensacionalista do mundo:
    Charles Dickens
    Emile Zola
    Alexandre Dumas (pai & filho)
    Edgar Allan Poe
    Stephen King
    .... Para você não se sentir constrangida com essa "coisas de mulher"...
    :-)

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  3. Querida Fada,
    Este seu folhetim realmente está muito divertido! Dou muitas risadas com ele, rs...No meu caso, não há conflitos e nem constrangimentos. Na verdade, não sei quais seriam os melhores adjetivos para descrever o que sinto. Só sei que ler algo como este folhetim me faz sentir tão bem...Acho que tenho uma tendência a ser feminista desde pequena!
    Ah, e não só o folhetim, mas o blog por inteiro está muito interessante! Serei sua seguidora fiel!
    Bjus!

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