segunda-feira, 21 de novembro de 2011

UM CONTO DE FADAS & LIVROS

Uma leitura em que a liberdade anárquica de um leitor se torna defesa assassina do objeto dessa liberdade, o livro, se encontra em uma das muitas histórias que se entrelaçam no romance Storia di Neve, de Mário Corona (2007). A jovem Neve, protagonista do romance, gosta de passear pelo bosque onde os lenhadores “fazem a madeira e os machados cantarem”, e ela gosta desses sons. Entre os lenhadores, ela é amiga do velho Lídio que, durante as pausas do trabalho, costuma ler um livro. Neve fica curiosa e, um dia, pergunta-lhe de que livro se trata, inclusive porque “de tanto manuseá-lo, as páginas mal ficavam ainda juntas” (CORONA, 2007, p. 483). O velho responde que ele não sabe, pois nunca aprendeu a ler. Neve pergunta, então, como ele pode ler se não aprendeu a ler, e Lídio revela uma perspectiva interessante sobre a liberdade do leitor que o livro proporciona:

Eu não sei nem ler nem escrever, mas quando olho para as páginas desse livro histórias, muitas histórias me vêm à cabeça, uma apos a outra, e as conto para mim mesmo, assim é como se estivesse lendo o livro. Acredito que o livro contenha uma única história, mas eu invento muitas olhando para as páginas, e são histórias bonitas, se eu soubesse escrever as escreveria, mas um dia vou contar umas para você. ( Ibidem, p. 484).

Neve pergunta para Lídio se ele consegue inventar histórias sem olhar para o livro, mas ele responde que não, sem abrir as páginas não nascem, são as páginas que as despertam, e assim “... você vê que, na prática, leio histórias sem saber ler” (Ibidem, p. 484).

Curiosa, Neve pede ao velho o livro emprestado e vê tratar-se de Os Noivos, de Alessandro Manzoni, que ela nunca lera. Neve propõe ao velho a leitura do romance e, no começo, somente Lídio parava para ouvir mas, em poucos dias, todos os lenhadores se aproximaram para ouvir a leitura, para escutar a narrativa das desventuras de Renzo e Luzia. O fim da leitura do livro provoca, em todos esses leitores ouvintes, um sentimento de tristeza. O mais triste de todos, porém, é o próprio Lídio, porque, explica,

[...] agora já conheço a história de meu livro, e quando viro as páginas elas não me dizem mais nada. As páginas não me contam mais histórias, não me deixam mais inventar histórias para mim. A única história que me contam é aquela que você leu, mas essa eu agora já conheço. Preciso encontrar um outro livro, que eu não sei o que tem dentro, e então, talvez, as histórias voltem. (Ibidem, p. 485).

Neve resolve presenteá-lo com seu livro de gramática, e não lê sequer uma linha para Lídio, que volta a “inventar” (de inventio = encontrar) as histórias nas páginas. Dois anos mais tarde, Lídio se apresenta ao padre da aldeia, dom Chino, que se maravilha pelo aparecimento do velho, pois esse costumava rezar somente nos bosques e não freqüentava a igreja. Ainda por cima, lia e relia o mesmo livro sem saber nem ler nem escrever. Anteriormente, Lídio visitara Neve e deixara-lhe de presente Os Noivos. O velho quer se confessar, mas “de homem para homem”, olhando nos olhos de dom Chino. Se confessa, assim, com uma garrafa e dois copos de vinho na mesa, assumindo a culpa de ter matado um homem. A razão de seu homicídio reside no livro que esse homem roubou dele, o mesmo que Neve lhe dera. Quando Lídio pediu ao homem que o devolvesse, esse o ignorou. Tomado por um raptus, Lídio cravou-lhe a foice no peito, pois o homem mentira, dizendo-lhe que queimara o livro. Lídio, com efeito, não acredita e, depois de matar, procura e encontra o livro, que leva, manchando sua capa com o sangue.

Agora, cheio de remorsos, resolveu confessar e ir embora. Com efeito, depois da confissão, Lídio desaparece da aldeia, sem deixar vestígios. Muito tempo depois, será a própria Neve que encontrará um esqueleto. Ela mesma o identifica como os restos de Lídio, graças a uma lata selada ao lado dos ossos, que contem, entre outros objetos, o livro que Neve lhe dera e com o qual será enterrado.

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