sexta-feira, 18 de junho de 2010

BIOGRAFIAS IMPOSSÍVEIS: CÁLIDA NEBULOSA.

A esquerda: a foto do passaporte de Cálida Nebulosa.

A senhorita Cálida Nebulosa, de origem rural, mede pouco mais de um metro & tem cara de ostra. O pai, Nérvulo Nebulosa, se ocupa de vacas, em particular de seu trato gastro-intestinal, que conhece profundamente ao toque. Possui a extraordinária capacidade de distinguir as particularidades que envolvem – ou revolvem – essa última parte do aparelho digestivo dos simpáticos animais quadrúpedes ruminantes, & é um dos mais conhecidos experts no campo. Infelizmente, os vapores mefíticos que, com demasiada freqüência o envolveram desde jovem nessa brilhante atividade minaram definitivamente sua saúde. A mãe, Sonhante Nebulosa, quando senhorita tocava piano mas, fascinada pelo conhecimento profundo dos labirintos bovinos do então jovem Nérvulo, abandonou a possível carreira de brilhante concertista em festas rurais & bucólicas, com a finalidade de se tornar sua devota esposa &, principalmente, dedicar-se às beatas tarefas da devoção religiosa na igreja local, uma imitação praticamente perfeita da basílica de Santa Cleonilde das Marés, em Finis Terrae, Portugal, ainda que em escala reduzida. Dessa união bendita, principalmente pelo pároco da aldeia de Cambatatã, localizada nada mais nada menos do que no interior do interior do Brasil, a cavalo do trópico de Capricórnio, nasceram dois filhos. O primeiro, Crédulo Nebulosa, subiu na carreira em uma multinacional de produtos de jogo de azar para malandros. A empresa produz baralhos com sete ases, dados côncavos e convexos com sete caras, tarôs trucados e, principalmente, roulettes com várias inclinações, entre as quais a mais vendida é aquela de inclinação sado-masoquista & fetichista. Crédulo casou-se felizmente com uma doce donzela da aldeia feliz de Cambatatã, generosa & cheia de piedade, tão cheia de piedade que se dava por piedade a todos que mostrassem tendências à solidão & melancolia. Crédulo, movido por tamanha devoção para com a humanidade, sentiu um frêmito na frente, de aprovação, & pediu sua mão, que ela, certeiramente, aplicou no lugar certo, no momento certo. E viveram felizes & contentes.

A segunda filha do casal Nérvulo e Sonhante foi, com efeito, a ostra anã Cálida.

Desde a mais tenra infância, Cálida sonhava com outros lugares e outros horizontes, talvez mais elevados, já que ela ia à altura de pé mas, de qualquer maneira, o fato é que, olhando para o infindável horizonte de campos de túberos em volta de Cambatatã, repetia para si mesma que um dia teria conhecido realidades mais rizomáticas do que aquela. A primeira vez que expressou esse desejo, todavia, levou dois redondos tapas na cara, simultâneos, um de cada face, tapas dedos pelo casal Nebulosa, e que configuraram, de forma definitiva, suas feições de ostra. Daquele dia em diante, alem de querer ir embora, Cálida tomou consciência da beleza das mulheres & de sua própria configuração de fruto de mar viscoso, & começou a acariciar a idéia de transformar todos os rostos em ostras mais ostras do que o dela. A situação era tão trágica, mas tão trágica, que a senhora Sonhante, cada vez mais enrolada nas sábias coisas da religião, percebeu os traços do demônio no rosto da filha e pediu a intervenção do bom pároco da pequena paróquia tropical. O pároco sugeriu que levassem a ostra anã para uma benção especial, em que ele usaria o suco mais puro do produto dos campos de Cambatatã. Em resumo, tentaram caçar o diabo a golpes de purê. Ao que parece, a coisa não funcionou, e Cálida cresceu – pouco, para dizer a verdade – de alma cada vez mais apodrecida.

Finalmente, conseguiu fugir ao seu cruel destino de pequena filha de Cambatatã, quando já tinha se tornado uma ostra adulta, mas ainda assim anã, e foi trabalhar na cidade grande, em Capital City e ainda mais, ainda por cima, a cavalo do mesmo trópico tropical. Em Capital City, a jovem ostra encontrou seu destino, ou melhor, sua Nêmesis Profunda: um emprego em uma revista de plástica e beleza. O fato é que, vejam bem, nenhuma mulher impressa é o que aparenta ser. Aliás, é sempre produto de infinitos retoques: uma olheira aqui, um rolinho de gordura acolá, uma falta de elasticidade acima, um excesso de adiposidade abaixo... Enfim, nenhum cirurgião plástico realiza na prática, o que Cálida Nebulosa alcança com seus instrumentos digitais, com os quais retira as imperfeições, para satisfazer, assim, os sonhos de senhoras calipígias, exuberantes e não mais viçosas, graças a seu bisturi informático. A Ostra Anã, que havia muito acalentava o desejo de destruir todo e qualquer vestígio de beleza feminina, encontrou-se trabalhando na invenção de belezas refeitas & falsificadas que nem milagres... E se essa não é Nêmesis, então me digam vocês o que é! Cálida realiza centenas & centenas dessas operações milagrosas todo mês, produz milagres digitais quotidianos, deixando as leitoras sonharem, leitoras normalmente imperfeitas, de poder um dia se tornar algo que nenhum cirurgião jamais se permite prometer.

Apesar dessa piada do destino, todavia, Cálida não podia se conformar com seu estado de Vênus Impossível, e sentia queimar dentro o desejo de desfigurar profundamente algo, ou melhor, alguém mais bonito do que ela. Assim, começou a procurar pelo amor. Aliás, pelo Amor com a famosa A maiúscula, já que, alimentada por anos de papas de telenovelas, que a mãe Sonhante assistia com olhos sonhadores e nostálgicos, obviamente não conseguia pensar em uma alternativa plausível ao que via na TV, e queria realiza-lo nesse mundo de pessoas em carne e ossos.

Em breve, o fato é que Cálida, pequena, de cara torta e com o dom digital de transformar mulheres normais em belezas virtualmente impossíveis, queria encontrar uma mulher bonita e torná-la uma montruosidade real. Isso, afinal das contas, nada mais é do que o papel de vilã em uma qualquer novela de respeito: odiar toda forma de beleza, certo requinte de pensamento e qualquer resquício de inteligência. Tornar-se Pura Inveja, aquela que a mãe Sonhante sempre avisou ser um Pecado Capital. Mas, fazer o que? Cálida Nebulosa era inevitavelmente atraída pelo que mais odiava: as mulheres.

Bom, está na hora de deixarmos essa ostra sem pérula rara às suas piedosas obras de restauração corporal fictícias. Vamos deixa-la à sua ráiva camuflada de Vítima das Circumstâncias, já que não se trata de uma Personalidade Apaixonante, mas sim, de um Mero Acidente contra o qual gente bem mais interessante teve a desavença de esbarrar. Ainda que Cálida não seja um iceberg, e quem nela esbarrou não tenha afundado feito um Titanic ela teve, mesmo assim, a capacidade de provocar alguns galos nas cabeças.


Um comentário:

  1. UaU, que surreal hoje... gostei, achei pesado, fiquei comovida com a Cálida e ao mesmo tempo raivosa de saber que ela estava por trás das belezas photoshopadas... quanta maldade e humanidade.

    Eu estou aqui sofrendo de Síndrome do Bob Esponja e criei um blog... ainda não divulgado, em fase de experimentação... dá uma olhada lá depois. Até.
    http://antianaliticamente.blogspot.com/

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