terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

UMA HISTÓRIA COM A MORAL: DOIS LEITORES MODELO.

Sylvia Beach com Hemingway e, no final, com Joyce.


Aleluia! Hoje encontrei um respaldo às minhas dificuldades com o Ulysses de Joyce. Esse é um livro que já comecei várias vezes e deixei de lado por me sentir "imatura para sua compreensão".
Da última vez cheguei à página 187 de minha edição, antes de desistir. Daquelas páginas, não entendi nada.
Frustrada por minha incapacidade de desfrutar dessa obra prima da literatura, me deparei com uma história interessante, a história da livraria parisiense "Shakespeare & Company", fundada por uma americana apaixonada pela vida na Europa, Sylvia Beach. Na Paris da década de '20 havia uma comunidade americana composta por escritores, artistas, intelectuais, ricos em férias vitalícias. Boa parte deles frequenta a livraria, pois é "o lugar" para comprar o que é bom em inglês. A livreira, Sylvia, é uma mulher que sabe gerenciar bem seu ne

gócio, pois gosta mesmo dessa vida: a parte "trendy", os moderninhos (os "modernos" de língua inglês) compram, sugerem, apresentam suas obras, enfim, por um efeito dominó a S&C é um lugar fashion.
Sylvia é também editora. Aliás: é "A" editora. Mais exatamente, a responsável pela publicação do Ulysses. A história disso é um caso a parte, pois os problemas foram constantes. Todas as vezes que Sylvia, como editora, enviava de volta os manuscritos (ilegíveis) com suas dúvidas, recebia de volta algo tão mudado que era, basicamente, um texto diferente.
Sylvia quase se arruinou, inclusive porque o livro foi censurado nos Estados Unidos e sequestrado. Enfim, dessa história toda, resultou um verdadeiro "abaixo assinado" de todos os escritores & artistas & intelectuais que se declararam contrários à censura.
Entre os outros que frequentavam a livraria, Hemingway é um amigo querido de Sylvia.
É. Hemingway, aquele que ganhou o prêmio Nobel pela literatura com histórias sangrentas, de matança, descrevendo a Espanha da tourada. E outras histórias sangrentas, de matança, descrevendo a Espanha da Guerra Civil. E outras histórias sangrentas, de matança, descrevendo a luta incansável do pescador arrastado por sua presa. (Parênt
esis: qualquer referência à saga "fundadora" da busca incansável pelos sete mares até o duelo final, saga que representa uma visão norte americana de certa obsessão do modelo masculino é puramente proposital: a presença de Moby Dick assola escritores e artistas até os dias de hoje... Fim do parêntesis).
Então, o Ulysses é censurado. Sylvia está se arruinando, porque seu investimento com o Joyce lhe impõe que dê dinheiro para o escritor comer e alimentar a família...
Certa estava ela. Fez algo pelo qual hoje devemos lembrar dessa mulher tanto quanto lembramos do Joyce. Acreditou na escrita e narrativas "sem fronteiras" de Joyce. Permitiu que milhões de leitores, milhares de estudiosos se debruçassem nas interpretações e referências infindáveis desse grande romance.
Aí vem minha pessoal questão: se é tudo isso, preciso ler o Ulysses. Eu seria boba de perder a chance de ler algo que pode "abrir" minha mente. Assim como penso que precisei ler o Hemingway (e o fiz) e Virgínia Wolf e Henry James e Katherine Mansfield e Willa Cather e por assim vai, encadeando leituras em uma rede que se expande.
Mas Joyce, nas minhas tentativas, se revelou um elemento difícil. O homem é irlandês. Vem daquele lugar que a gente conhece pelas fotografias
que expõem os altos rochedos, defesa natural contra os ataques inimigos, fortalezas naturais pelas quais o acesso é, no mínimo dificultado. Eu treinei. Lí, antes, os livros ditos "menores" (tanto por tamanho, como por dificuldade...), como "The Dubliners" e "Portarit of the artist as a young man". Li e achei legal. Sei lá, sem grande empolgação. Mas gostei, tá? Gostei.
Virgínia Wolf. Parte do treinamento em uma linguagem narrativa específica de uma recherche modernista. Aqueles que escrevem o "stream of consciousness". Precisa entender. Aí vou, lendo a Virgínia. E os contos eu gostei. E "Orlando" é um belíssimo livro. E "As horas" também não é uma narrativa que me chateia. História, personagens, ações, uso de um tempo não linear... tudo jóia, fa
zem uma literatura de primeira...
E aí, fui ao Joyce. Primeira vez parei na página 47. Segunda vez fui até a 120. Na terceira, cheguei à 147. Não que o aumento do número de páginas (e todas as vezes recomecei DO COMEÇO) seja proporcional ao incremento de compreensão. Não, não intendi nada na primeira, nada na segunda e nada na terceira.
Mas, encontro consolação em dois grandes parceiros. Que sei que não leram e, se leram, não gostaram.
O primeiro é nada mais nada menos que o prêmio Nobel pela literatura Hernest Hemingway. Ele NUNCA conseguiu ler o Ulysses. achava enfadonho.
A segunda é nada mais nada menos que a estrela parceira do próprio Joyce na galáxia do "stream of conscioussness", quando se cita um se cita, sempre, o outro: Virgínia Wolf.
Em seus diários, achei essa pérola em relação à leitura que ela fez:
"Acabei de terminar o Ulysses e o julgo um insucesso... É prolixo e desagradável. É um texto grosso, não somente de maneira objetiva, mas também de um ponto de vista literário".
CONCLUÍNDO!

1) Hemingway e Virgínia estão aí, luminosos indicadores de que o negócio da leitura de Joyce é barra pesada. Infelizmente, Virgínia se enganou sobre a qualidade literária do Ulysses, que ficou como ponto sem volta na literatura. Então, me consolo dizendo que um dia vou conseguir, porque continua valendo a pena. De que as dificuldades possam ser praticamente intransponíveis, Hemingway e Wolf são testemunhas. Mas precisa fazer como Virgínia: chegar até o fim para falar.
2) Sem essa mulher, Sylvia Beach, tudo isso não teria sido possível. O Ulysses, talvez, não existiria.
E isso me leva a conclusão número
3) Hemingway, com o simples ato de manifestar contra a censura, a respeito de um livro que não leu, nos diz o seguinte: "Antes de censurar um livro ou uma obra de arte, é fundamental lembrar que se deve deixar a possibilidade de ler/ver a todos. Somente essa liberdade é
fundamental. As pessoas, com base no que será dito daquele livro ou daquela obra de arte, escolherão se ler/ver. a discordância dos conteúdos, ou da forma, deve poder ser expressado, como fez Virgínia Wolf, na base de um "Li". Ainda que não tenha gostado.
A censura não permite isso. Ela navega um barco furado carregado prevalentemente de gente que julga um livro ou uma obra sem ter se dado ao trabalho de ler/ver. Se essa gente, bucha de canhão de alguém interessado na censura escolhe acreditar nisso, ninguém vai obriga-los a ler/ver. Se essa gente for ler/ver, poderá julgar com conhecimento e terá duas opções: convencer de que o livro/obra não tem valor ou mudar de opinião.
Parece complicado? Não, são as regras da democracia...


2 comentários:

  1. Giulia, cheguei até Sylvia Beach (por indicação tua) e já me sinto feliz - Ulysses nunca passei da folha 15.

    ResponderExcluir
  2. Adorei seu texto. Conhecia a história de Sylvia Beach a anos, sempre fui grande fã daquilo que Gertrude Stein chamou (injustamente, como pensava Sylvia) de "geração perdida".

    Realizei o sonho de conhecer a "Shakespeare And Company" em 2011. Claro, não era a original, mas vale pelo peso de toda a história que o nome carrega. Visitei também os antigos endereços de Sylvia em Paris.

    Sua dificuldade com "Ulysses" é a de muitos e a minha também. Tentei ler o livro 3 vezes, ele está na minha estante e sempre o observo com ares de "um dia te pego".

    Tenho o mesmo bloqueio com Proust e seu "Em Busca do Tempo Perdido", outra obra difícil, para simplificar uma descrição.

    Estou aprimorando meu inglês, tenho uma vaga ilusão de que Joyce pode ser menos "duro" no original.

    Se você gostou da história de Sylvia e quiser saber mais tente ler o livro de Noel Riley, "Sylvia Beach And The Lost Generation". Existe uma edição em espanhol.

    Abraços,

    Allysson Oliveira
    Goiânia - GO

    ResponderExcluir