segunda-feira, 10 de outubro de 2011

SOBRE O MUSEU DA INOCÊNCIA

Em seu romance o Museu da inocência, Orhan Pamuk narra uma história de amor ambientada na Istambul da década de 1970. O protagonista, Kemal Basmaci, é noivo da jovem Sibel, quando encontra a prima Fusun, pela qual se apaixona e com a qual tem um relacionamento breve, porém intenso. A história deles, todavia, acaba, pois Kemal não rompe com a noiva. Separados, Kemal se apercebe que sem Fusun não consegue viver, e passa oito anos em busca da possibilidade perdida dessa história de amor. Como “antídoto” à sua dor de amor, Kemal começa a recolher objetos que pertenceram a Fusun ou que remetem a lugares e momentos associados a ela. Ele guarda esses objetos no apartamento onde se encontrava com a moça. Quando Fusun morre, Kemal toma a decisão de comprar dos pais dela a casa onde morava e de expor os objetos recolhidos aos olhares do público, inaugurando, assim, o Museu da Inocência.

Raramente um romance é tão fiel ao seu titulo: ler O museu da inocência é como entrar e visitar um museu. Virar as páginas corresponde a visitar suas salas, em que nos deparamos com os objetos expostos nas vitrines, lendo as escritas das placas que explicam. Assim como em um museu, o autor reconstrói um mundo, salvando-o do esquecimento. O autor nos devolve a história de amor entre Kemal e Fusun, em cada detalhe singular e, ao mesmo tempo, recria a vida de uma cidade, Istanbul, na década de 1970.

As datas são importantes em qualquer museu: nesse, a primeira é 26 de abril de 1975 e a última será nove anos e quatro meses depois. A primeira é a data do dia em que Kemal entra na loja onde Füsun trabalha como vendedora e a última é do dia em que Kemal e Füsun viajam para a Europa, quando tudo acaba. A simples história desse amor é banal.

Quando a noiva de Kemal o abandona, o protagonista reencontra Fusun, casada, e começa um louco período em que ele freqüenta a casa dela e de sua família entre três e cinco vezes por dia. Ao longo de sete anos, dez meses e três dias, ao longo de 409 semanas, Kemal janta na casa da família da moça 1593 vezes.

A exatidão dos números é importante, pois oferece uma medida da meticulosidade doentia com que Kemal conserva, em sua memória, os vestígios de seu amor. A essa altura da história, ele ainda não sabe que, depois de visitar 5723 museus, dedicaria um museu a Füsun. Começa, todavia, a acumular objetos que pertenceram à moça, roubando na casa dela lenços, grampos, bibelôs, saleiros. Em seguida, amplia o campo de sua coleção, pois Füsun não é mais somente Füsun, tornou-se a cidade em que se amaram, está no navio do qual seus olhos se pousaram sobre o Bósforo, na garrafa de refrigerante, nos outdoors publicitários, na caixa de cigarros (ou na própria bituca), nos shows televisivos e em suas guias de programação, em uma infinidade de objetos e imagens que acabam se recompondo, como em um caleidoscópio, dentro do Museu da Inocência, espécie de Jardim do Éden antes da queda. Ainda que, aparentemente, no centro da memória se encontre Füsun, é, na verdade, Kemal que sempre fala de Kemal, personagem narcisista, frequentemente irritante, que encerra sua narrative afirmando que “Tive uma vida feliz”, sem se perguntar quantas pessoas, por causa disso, foram infelizes, e que - com uma pirandeliana virada narrativa – pede ao escritor Orhan Pamuk (que já encontramos dançando com Füsun durante a festa de noivado de Kemal com Sibel) para escrever o livro que estamos lendo, para que esse desenvolva o papel de catalogo e guia completo do museu, para que todos os visitantes possam se deslocar por suas vitrines com a clareza do que estão vendo e das razões pelas quais os objetos estão ordenados conforme uma dada narrativa. Em 1999 Orhan Pamuk comprou um palacete histórico em Istanbul para realizar um projeto ligado ao romance, encarregando o arquiteto Ihsan Bilgin – antes de começar a escrever o romance - de transformar o prédio em um museu, onde o livro e o próprio museu se cruzassem na história de amor entre Kemal e Füsun, os protagonistas. Depois de nove anos, tanto o romance como o museu nasceram contemporaneamente.

Nas últimas páginas do romance, Pamuk elabora de maneira clara e eficaz uma verdadeira “teoria do museu e das coleções”, oferecendo, inclusive, um mapa para chegar facilmente às suas instalações e dependências, e uma cópia de uma entrada, que todo leitor poderá apresentar para visitar o museu: será um percurso lento, às vezes tedioso, às vezes dará vontade de pular alguma sala e deixar de lado alguma relíquia que nos parece já conhecida. No final, todavia, sairemos do museu com a sensação de ter visitado a vida, que se trata de uma coleção de momentos felizes.

Na foto: o palacete onde foi inaugurado o Museu da inocência.

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