quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A FÍSICA DA MISÉRIA E A RETÓRICA DA POBREZA


(Imagem retirada de: http://fisicamoderna.blog.uol.com.br/arch2006-06-11_2006-06-17.html)

Sabemos que existe a temperatura relativa dos graus Célsius, cujo termo de referência é o Zero relativo. Existe, porém, o chamado Zero Absoluto, que corresponde a  -273 °C.
Agora vamos para a economia fantasiosa do mundo globalizado do século XXI: Existe uma "coisa"chamada, genericamente, pobreza. Essa "coisa" genérica, que a gente fala com o senso comum, corresponde a Zero graus Célsius, que para todos nós é a referência da passagem entre o negativo e o positivo. Visto por essa perspectiva, na economia do senso comum, existe chama "pobreza digna" aquela que, com 724 R$, teoricamente consegue, com muitos sacrifícios, viver na dignidade de conhecer seus limites. Pode fazer planos futuros porque tem o que comer. Não é fácil, é um aperto que eu não consigo imaginar, mas dá pra comer todos os dias. Essa "Pobreza digna", atualmente fixada no valor do salário mínimo, corresponde, no nosso termómetro, ao Zero graus Célsius, o ponto de virada a partir do qual a temperatura se torna positiva.
O que acontece é que ninguém, no dia a dia, calcula o calor que sente utilizando, como referência, a "temperatura" Zero graus Kelvin, o zero absoluto. Ninguém fala algo do tipo: pôxa, hoje em Black Stream fez um calor insuportável, chegou a - 228 graus Célsius... e daí? É uma temperatura negativa em que não há possibilidade de vida alguma, ponto. Não faz sentido, uma diferença tão pequena entre algo negativo e outra coisa um pouco menos negativa. Nossa percepção continua negativa, se não percebemos diretamente que, no cotidiano, aquele negativo corresponde a  45 graus Célsius positivos. Não é compatível com nossa realidade essa abstração do "absoluto" e, nas estatísticas das grandes instituições econômicas, financeiras e o que for, significa "pior é impossível". O grau Zero absoluto da pobreza é a miséria sem futuro. É aquela miséria em que não se faz orçamento, não se escolhem sacrifícios, a serem feitos, porque não há nada a ser sacrificado. Esse ponto, o Zero absoluto, é a "morte térmica do universo", a entropia absoluta. A miséria absoluta é isso mesmo. Já com um grau a mais, ainda tem energia... Quando raciocina na escala de graus Célsius, sabe que, antes de chegar a esse ponto absoluto deve descer bastante, abaixo do zero. É um longo caminho que pode ser invertido, ou assim gostamos de pensar. Enfim, sempre pode ser pior, antes de chegar ao Zero absoluto, ao fim de linha da miséria.
Então, o que eu penso, quando a voz do marketing eleitoral fala, é que não nos contam que, na verdade, eles pensam a partir da referência da miséria calculada como Zero absoluto, mas aí eles a chamam com o nome errado, a chamam de pobreza (sem o adjetivo digna), mas não a chamam miséria. O que eu entendo é que eles têm uma retórica lastimável, através da qual conseguem afirmar, falando a verdade, a mais pura verdade, que a miséria não existe, mais ou menos em um jogo de prestidigitação lexical, dizendo que Senhoras e senhores, 1.00 R$ no bolso é tudo que precisa ter, é um degrau acima do Zero absoluto, é pobreza mas não mais miséria, venham e comprem a ilusão de que o tio Patinhas é você, com 1.00 R$ chegarão a ter seu próprio depósito de moedas de ouro, com essa moeda no bolso começa o caminho (íngreme, árduo, ardiloso) que os levará a conquistar... o Zero relativo, isso é: se vocês se esforçarem muito, mas realmente muito, um muito muito muito grande, poderão se tornar "pobres dignos". Andem, seus miseráveis, vocês ainda têm a chance de serem pobres! O pessoal do marketing, se sabe, é otimista. Com essa visão messiânica, o mundo é muito mais bonito e cor de rosa e os governantes do mundo inteiro se orgulham em eliminar do vocabulário a palavra miséria. Pena que, muuuuuitas vezes, se trate só de erradicação lexical...
Para mim, um dos grandes problemas nisso tudo é a dificuldade da maioria das pessoas, quando a língua se reduz a poucas palavras desgastadas de quem não desfruta de serviços culturais de amplo, amplíssimo espectro e qualidade (da escola ao teatro, da biblioteca ao cinema), em reconhecer a sutileza das campanhas em mistificar a "pobreza digna", aquela que (sempre teoricamente) oferece um futuro concreto e que é o nosso Zero graus Célsius, com a Miséria em que os sujeitos não reconhecem a si próprios nem mais as feições da humanidade. E  desculpem se isso é pouco!

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