quinta-feira, 31 de maio de 2012

PENSAMENTOS PRIVADOS, PALAVRAS PÚBLICAS.

Páginas escritas e lidas em ocasião do evento "Opressão: machismo e homofobia na Universidade" na Faculdade de direito, Ribeirão, 30 de maio de 2012.

Senhoras alunas e mulheres que me prestigiam com seu interesse nessa página de reality show de uma mulher de 43 anos. Senhores alunos e homens, que com sua presença revelam pelo menos uma possibilidade em abrir uma dialética da convivência digna com as amigas e as parceiras com as quais, quotidianamente, vocês devem conviver:

Gostaria de propor a vocês algumas questões em forma de diário. Pensei que uma coisa que está faltando, e muito, é a volta a um dos fundamentos das lutas pela emancipação feminina, que reside nas palavras “O privado é público”. No início da história do feminismo, as mulheres tinham suas conversas de mulheres, sobre seu dia-a-dia. Nada que, até hoje, esteja fora do comum. A grande diferença do feminismo foi a capacidade de traduzir as questões que envolviam o privado em ação e movimento. Levaram à praça pública as palavras que diziam o silêncio que cercava, no espaço público, suas vidas, necessidades e exigências.É nesse sentido que resolvi utilizar, hoje, um registro que me pertence não porque sou biologicamente mulher, mas porque fui criada como uma. A linguagem que posso tentar, aqui, hoje, é aquela que melhor traduz as minhas inquietações como feminista não somente acadêmica, mas na vida quotidiana. Não gosto de ser panfletária, quando me dedico a algo que tanto me diz a respeito, que é o meu próprio jeito de estar no mundo, e quero fazer o máximo para convidá-los a entender um dia de uma mulher burguesa de 43 anos, que trabalha na universidade, não tem filhos, é branca e estrangeira. Tudo isso deve ser colocado com clareza, explicitado, porque são as minhas identidades e diferenças com vocês. O que vou ler também busca provocar momentos de identificação e até de oposição. Ofereço-lhes meu dia para vocês medirem os seus, para procurarmos, de novo, palavras que permitam o sentido da ação.

Ribeirão Preto, 30 de maio de 2012.

Querido diário,

Hoje tem sido um dia daqueles que não dá para contar, pois envolve muitas coisas que, se colocadas em um lugar público, provocam um certo arrepio, coisas que pertencem à esfera mais íntima de uma pessoa, o corpo. Coisas que podem ser reveladas unicamente a um diário, no máximo, máximo, a uma amiga querida... Mas vamos com ordem, que depois essa matéria tão íntima fica tumultuada, meu caro diário, e se um dia eu for ler novamente essas memórias, vou querer lembrar direito. E imagine se alguém mais fosse ler, sei lá, esqueço você, meu diário, em alguma gaveta e, depois de morta, você é encontrado e folheado... bom, aí não vou querer mesmo que alguém fosse entender tudo errado! Sei lá, escrever é complicado, até em um diário, pois nunca se sabe onde pode cair. Pelo que sei, gostaria de saber misturar alguns gêneros literários... O que teria sucesso de vendas? O que os curiosos gostariam de saber, quando fossem ler esse diário? O que eu poderia querer que lembrassem de mim? Na verdade, a preocupação é secundária... Um diário serve para falar de mim, de meus acontecimentos e daquilo que me provocam, se um dia houver outro leitor, que se vire, tenho lá eu que me preocupar também depois de morta se e como sou “decorosa” ou “indecorosa”. Que palavras mais antiquadas, decorosa e indecorosa. O decoro como virtude. Então, não quero me preocupar muito se em um diário sou ou não virtuosa. Ah, não, um diário é um diário, essa sou eu, e se algum tiver a manha de ler, vai encontrar o que eu quero. Pausa... possível que nem em um diário eu encontre descanso sobre o que sou, ou o que digo ou, pior o que escrevo? Sei lá, de repente o vicio acadêmico toma conta de mim. Quando escrevo para a academia preciso usar uma linguagem que, um pouco, me estranha. Em um paper, em um artigo, em uma aula, preciso usar uma linguagem “neutra”, a boa, velha linguagem neutra da “ciência”. Sua capacidade de afirmar, de sustentar hipóteses de maneira clara, afirmativa, comprovada. Neutro. Certo. Só que eu não cresci educada totalmente a isso. Eu até que desde cedo procurei me entrosar no “neutro”, mas acabei me tornando... mulher. Desde que no jardim de infância tiraram o retrato fotográfico de cada um. Eu tinha quatro anos, e até hoje me lembro da cena. A cada menina e menino perguntavam se na foto queria aparecer com as bonecas ou com a bola, os carrinhos e os soldadinhos. Como eu desenvolvi uma certa bulimia simbólica e na geladeira (na tristeza existencial, frustração e infelicidade, comeria o mundo. Por isso minha geladeira fica um pouco fria, escura e vazia, que nem a origem do universo. Pois a frustração e a tristeza existencial não podem se traduzir em peso). O tempo passa, e ninguém, nesse mundo, presta atenção às senhoras acima do peso e enrugadas. Traduzindo: esta mundo não é para as velhas. Seria, então, eu também, fã de Ana & Mia? Transtornos alimentares para não assumir o tempo que passa. Uma mulher, ao que parece, só é mulher enquanto objeto desejável (nem sequer desejante). É mais difícil prestar atenção em uma mulher jovem o em uma velha? Que quando se envelhece, só podemos ser mães e avós...

Voltando à foto, justamente por essa tendência à bulimia existencial já desde criança, quase de imediato falei que queria tanto as bonecas quanto o resto. Sei lá, de alguma obscura maneira queria que, naquele momento, ficasse registrado que não, não me importava o objeto em sim, mas o ato de brincar. De me divertir com tudo que pode ser divertido para uma criança. Definitivamente, eu era uma criança cheia de esperanças e boas intenções, mas a realidade era que, mesmo tendo a sorte de um pai anarquista e de uma mãe feminista, quando recebia presentes muitas vezes eram Barbies. Tinha uma verdadeira coleção: aquela loira, branca, de cabelos escorridos, com as pernas que ainda não dobravam. Aquela outra loira que já dobrava as pernas, a terceira loira de cabelo babyliss, a quarta de biquíni e com bronzeado, depois tinha a Barbie negra (mas de cabelo escorrido, chamava Cara), a irmã (ou sobrinha, sei lá) da Barbie, a Skipper, que virava o braço e crescia o peito em um instante, se tornando uma outra Barbie baixinha. Depois tinha a Ginger, que não sei se era só amiga da Skipper ou o amor da vida dela, rigorosamente trancado no armário (acho que saquei muito mais tarde que as duas podiam ficar juntas, felizes para sempre, duas lésbicas fashion riquinhas e empolgadas com o surfe, as festas... mas não podia antecipar os tempos, o seriadinho The L Word veio muito, mas muito mais tarde). Só sei que tinha também um Ken, mas ele era muito chato, não sabia bem o que fazer com ele. Minhas amigas faziam ele beijar a Barbie, mas eu achava meio que uma perda de tempo, minha Barbie era e fazia muitas coisas: medica, astronauta, paisagista, e ao mesmo tempo tinha que construir sua casa, cuidar da irmã/sobrinha, cozinhar... enfim, uma vida dura que o Ken, me parecia, não levava (o cara, aparentemente, não tinha muita outra atividade a não ser beijar a Barbie. Um verdadeiro tédio, um homem sem ocupação definida que anda de carrão para um monte de festas. As meninas não gostam do Ken, vai ver que o instinto as alerta que se trata de um boneco que introduz ao mundo dos cafajestes). Então, na foto, está imortalizada uma criança: Eu. Cabelinho curtinho, enroladinho, cara de sorriso tímido. De um lado as bonecas, do outro o resto. E eu, no meio, com uma vida feita de dias muito cheios de tarefas para minhas Barbies. Eu era criança, minhas frustrações não eram muitas, cresci em um ambiente saudável com pais que me ensinaram a sempre questionar, não obedecer somente porque alguém manda, em nome de qualquer autoridade. Eles são os primeiros responsáveis pelo meu olhar sobre o mundo, no bem e no mal. Minha mãe, quando casou, deixou a faculdade e virou dona de casa. Depois de três anos, olhou para meu pai e comunicou que uma vida em casa, dedicada a uma filha e a um marido não a satisfazia plenamente. Voltou a estudar biologia, se formou em menos de quatro anos e se tornou pesquisadora na Universidade. Cuidou de mim e de meu irmão. Um modelo e tanto. Meu pai, professor de física, sempre na universidade, desde que me lembro dividiu todas as tarefas práticas e de decisão com a minha mãe. Devo dizer que tive sorte, em crescer nesse ambiente.

Infelizmente, o ambiente familiar afortunado e o mundo fora dos muros domésticos não concordavam plenamente com essa visão de mundo. Os primeiros problemas dessa educação, para mim, surgiram no primeiro grau. Estudei em uma escola de freiras, mas minha professora era uma jovem laica. Estudei nas freiras porque fui à escola com cinco anos, e na época as escolas públicas não aceitavam crianças com menos de seis anos. Tendo começado nessa escola, que desfrutava de dinheiro público (custando, assim, muito pouco), acabei continuando nela até mudar, no ginásio para outra escola, essa sim, pública.

A escola era somente feminina, tanto no corpo discente como as docentes. As coleguinhas vinham, na maioria, de famílias católicas abastadas. Eu, não. Meus pais não são católicos nem de outra religião. Eu, definitivamente, não sou católica. Meus avós paternos eram gente da burguesia trabalhadora, minha avó filha de um pequeno empresário têxtil, meu avô contador. Do lado materno, tenho origens proletárias: meu avô foi policial militar, uma profissão para os pobres, na época, e depois foi operário em uma indústria química. Minha avó foi boleira e, na década de 1950, meu avô saiu da fábrica e os dois abriram um restaurante/pizzaria na cidadezinha de praia onde moravam. Minha avó, que não era feminista, foi outro modelo importante, sempre, sempre me repetia que ela queria que eu trabalhasse: uma mulher que trabalhava, para ela, era uma cidadã que não dependia de ninguém, que podia sempre sobreviver sem compromissos que a colocassem em situações de humilhação. Eh, grande mulher, minha avó! A outra avó, que não trabalhava, gostava de ler, e me dava livros de presente, alimentando minha mente e curiosidade. Ela que me presenteou com minha primeira edição de Alice no aís das maravilhas, Tom Sowyer, Huck Finn. Bom, aí, vou eu à escola das freiras. Aprendendo que a mamãe é o anjo do lar e que o papai é o provedor, coisa que, pontualmente, provocava minhas perguntas em casa sobre o que era aquilo, pois todas as mulheres de minha vida não passavam o dia como na escola me ensinavam que elas deveriam fazer. E outra: as próprias freiras eram o quanto de mais distante eu podia ver do modelo que propagandeavam de mãe/esposa/anjo do lar: mulheres que não eram casadas, não tinham filhos, eram diretoras, professoras, dirigiam uma escola, um internato, um refeitorio... A confusão estava armada em minha cabeça.

É nessa época que eu sofri o que muitas mulheres sofrem, o abuso sexual. Falando claramente: abuso sexual não é estupro. Não precisa nem ser uma forma de violência física. O abuso sexual sobre uma criança começa quando um adulto aproveita de qualquer maneira do corpo ou da mente de uma criança para obter uma qualquer forma de satisfação sexual. No meu caso, foi um pediatra. Portanto, duplamente difícil de se apontar o dedo, com oito, nove anos, e falar com voz infantil: “Mamãe, o doutor me tocou onde faço xixi, enquanto você, confiando em sua autoridade de adulto e de medico, me deixou alguns minutos sozinha com ele, quando você foi buscar algo que esse homem te pediu”. Imaginem o sentimento de uma menina nessa situação. Bom, somente depois de adulta acabei descobrindo que a maioria das mulheres que conheço em algum momento tiveram algum tipo de invasão corporal mais ou menos dessa natureza. Eu só sei que deve ser por isso que gostaria, sempre, de poder escolher um medico mulher. Na época não gostei desse acontecimento, me assustei e isso, de alguma maneira, me marcou. Hoje, esta seria uma postura que poderia levar um medico a ter sérios problemas, mas na década de 1970, sem um adulto vendo isso acontecer, o que fazer? Nada. E é isso que eu, criança, fiz: nada. Somente anos, muitos anos depois contei isso para a minha mãe. Que, por sua vez, relatou de quando um oficial que devia fornecer os alvarás para o restaurante dos avós colocou as mãos onde não devia na minha mãe adolescente, ela fugiu do escritório e se recusou a voltar para lá sozinha. Minha avó deve ter intuído alguma coisa, pois não insistiu. Também, não tinha muito o que fazer, e nada foi feito: qualquer legislação a respeito é muito recente e, apesar de existir, muitas vezes é desconhecida ou de eficácia escassa.

Mas não me tornei uma mulher apavorada pelos homens. Se toda menina, adolescente ou mulher que passa por experiências dessa natureza tivesse uma reação de pavor generalizada, a espécie já teria se extinto há muito tempo.

Falando nisso, justo hoje abri meu feissbuc, o reino da inconsistência do espetáculo público, a terra da ilusão da multiplicação infinita de nossos 15 minutos de fama. Bom, nesse imenso parque de diversão da efemeridade global, a página jogou na minha cara uma obra prima da gráfica feissbuquiana. Era um quadrinho dividido em vários quadros, oferecendo a visão das formas de depilação das partes íntimas das mulheres desde 1940 até os nossos dias. Mas essa obra de arte, em si, não me preocupou tanto, pois podia apontar para muitos discursos possíveis. O que me deixou francamente incomodada foi a série de comentários ao lado, na maioria masculinos. Nos comentários se torcia claramente pelo modelo 2012, onde o pedaço de mulher oferecido aos olhos estava completamente depilado. Um verdadeiro hino à pedofilia, já que na Natureza o pedaço de carne, pardon, de mulher em questão somente nas meninas antes da puberdade se apresenta naquele estado. Fiquei me perguntando como me sentiria, olhando-me no espelho do banheiro, eu, com 43 anos, e uma periquita de criança.... mas por favor, economizem-me! Ridículo! Tenho mais o que fazer que imaginar uma coisa assim! Se alguém não gostar do jeito que uma mulher é quando adulta, a porta é aquela, saudações e te encontro de novo no dia 31 de fevereiro, sim, depois do carnaval, assim te explico melhor o que é quaresma. Mas, no feissbuc, a torcida pelo modelo criança está grande. Querido diário, você pode me entender, você é o único que pode: ver exposto por todos os lados o convite a escolher mulheres meninas já é desagradável para alguém que passou pela experiência de ser “manipulada” por um adulto. Mas não é só isso: fico pensando que as adolescentes de hoje vão odiar o fato de suas periquitas não se manterem infantis. E fico pensando que esta é somente uma das formas exteriores que vejo por aí de manter uma mulher em um estado de infância perpétua. Os homens se tornam, em um meio de circulação de idéias tão amplo como o feissbuc, os juízes de um objeto do qual, evidentemente, se consideram os donos e, como tais, dispõem a seu belo prazer. Agora: eu sei que isso não passa de uma bobagem, que é fácil responder que é só uma brincadeira, uma piada. Sei que se eu falasse aos colegas professores da faculdade de uma coisa dessa seria liquidada ou com caras de constrangimento ou com mais alguma piadinha infame. Assim, na faculdade não comentei nada. Comentar coisas de gênero não é considerado acadêmico, é papo de mulher infeliz que está envelhecendo e que olha com inveja para as representações que os jovens fazem do sexo.... Será, mas me parece que a academia não está muito se ligando no que acontece nas relações de gênero do dia-a-dia.

Acontece, porém, que uma postura desse tipo se transforma em mil outras maneira de tratar uma mulher e o corpo dela, isso é, do meu. Por exemplo, minha visita ao ginecologista, hoje. Infelizmente, não tive a possibilidade de escolher uma mulher, me impuseram um medico homem. Não que isso a qualifique necessariamente como melhor profissional. Mas me deixaria a ilusão de que poderia ter um pouco mais de respeito, sabendo o quão desagradável é ser paciente dessa especialidade.

Eu vivo trocando ginecologista. A visita ao ginecologista sempre tem um que de humilhante, afinal, apesar de estarmos no campo da ciência, aliás, nas mãos da ciência, é a intimidade mais complexa, aquela que estamos expondo a alguém que não é bem uma pessoa de nossa esfera íntima. Sabe como é, querido diário, questões culturais sobre expor minhas intimidades naquela posição que impossibilita qualquer fuga pesam sobre mim! Talvez somente um homem adulto e inteligente com mais de quarenta anos (que já foi, então, a uma visita com um proctologista que, às vezes, pode ser uma mulher) possa entender o quão desagradável o ginecologista possa ser.

Em primeiro lugar, a gente responde a perguntas protocolares: idade, primeira menstruação, já teve gravidez, abortos, doenças, se usa anticoncepcional. Aparentemente, são perguntas inócuas tanto quanto as de um oftalmologista, que pergunta se enxerga bem de perto, de longe, se teve algum trauma aos olhos, alguma operação... Eh, certo, aparentemente é a mesma coisa. Exatamente. Fora o fato que o protocolo parece impor uma certa heterossexualidade compulsiva. Nenhum ginecologista, até hoje, depois de conhecer meu nome e idade teve alguma dúvida sobre minha orientação sexual. Talvez, se o protocolo de perguntas mudasse, mudaria também a abordagem diagnóstica sobre mim. Acho que as perguntas não deveriam se formular a partir de uma única hipótese normativa e prescritiva. Uma vez, depois de todas as perguntas rituais, respondi que eu estava com um problema de perdas. O elemento de avental branco me olhou e disse: “Mas vocês mulheres não precisam de um medico, vocês precisam de um encanador”. Exatamente o que uma mulher preocupada com sua saúde precisa ouvir antes de ficar ser roupa nas mãos desse senhor gentil, de prosa elegante e francamente disposto a te deixar à vontade, se colocando no papel do encanador. Um verdadeiro horror. O melhor foi outro, que me visitou sem sequer avisar do que estava fazendo. Bem desagradável. Claro, entendo que os médicos, hoje, devem ser produtivos e não há como perder tempo com delicadeza e gentileza perante corpos despidos de desconhecidas mais ou menos intimidadas, mais ou menos desconfortáveis, mais ou menos preocupadas.

Enfim, falo isso porque existem os profissionais que se dispõem um pouco mais a te ver como uma pessoa que não corresponde unicamente ou exatamente aos órgãos que estão visitando. Eu não sou um cano que vaza, a linguagem é, sim, importante. Assim como é importante que um medico te explique o que está acontecendo em sua menina flor, periquita, vagina e útero, como quiser chamá-la. Só sei que este som lúgubre de Útero lembra uma coisa perigosa. A letra U nos desfavorece. Assim como todo o repertório de palavras que pontuam nossa vida sexual: menarca (querido diário, você deve saber que se trata da primeira menstruação de uma mulher), que soa uma espécie de monarca, mas que é menos, menarca. Sei que não tem nada a ver com a etimologia da palavra, mas soa tão ruim, que ninguém usa. Depois tem a menopausa, novamente algo a menos... Não conheço sinônimos de menopausa. É menos e ponto. Menos Mulher? E a própria palavra, impronunciável, menstruação, que parece um xingamento em polonês! Menstruação: uma palavra sempre substituída por eufemismos delicados, quase fosse uma ofensa (efetivamente, em termos de fonética, a palavra ofende os ouvidos...): aqueles dias/o Período... palavras que não significam nada disso, a não ser quando pronunciadas a meia voz, até com constrangimento.

A questão, você vê, meu diário, é de um desaconchego profundo, sempre, com esse corpo que não é neutro, nunca. Eu gosto muito das mulheres que me preparam para a mamografia: em geral ajudam você a espremer seus peitos em uma máquina com a postura de quem sabe que não é o momento mais agradável do dia de uma mulher. Sabem também que uma parte das mulheres que se submetem ao exame tem ou saberá que tem algum elemento de preocupação. Querido diário, vou te voltar ao útero. Uma mulher pode ter uma vida sexual plena e satisfatória sem usar o útero? Claro que sim. O útero serve unicamente para a gravidez. Fora isso, é extraordinariamente ativo uma vez por mês em nos tornar alvo de muita propaganda de absorventes. Na verdade, querido diário, nos últimos anos a frase do ginecologista a respeito de precisarmos de encanador se tornou evangelho do marketing. Ao que parece, nós mulheres não somente precisamos de absorventes com abas, sem abas, suaves, secos, perfumados de frutas cítricas, com dupla e tripla barreira anti-vazamento. Ao que parece somos um verdadeiro problema de saúde pública, piores que esgotos a céu aberto. Para o mundo, nos mulheres vivemos vazando trinta dias por mês. Portanto, precisamos sempre por mais uma barreira entre nossos vazamentos e a calcinha, imagino para proteger o mundo das enchentes que provocamos. Alem disso, as mulheres fedem. E não pouco. Pois todo dia, na publicidade, nossa menina flor contradiz esse seu nome, precisando de materiais saponáceos com cheiro de lavanda, de frutas vermelhas, de pinho sol. Tudo delicado, certo, mas para as mulheres um sabão neutro normal não é suficiente, como aparenta ser para os homens. Não, nós mulheres precisamos encobrir cheiros selvagens que são de nossa natureza, aparentemente inevitáveis com uma seria lavagem com produtos específicos. Já isso me deixa preocupada... será que realmente uma mulher precisa cheirar feita um chiclete, aroma artificial de cereja, depois de uma lavagem com um cheirinho delicado de lavanda, como se estivesse usando amaciante de roupa?

E nossa natureza revoltante está também nas axilas, é claro, que hoje em dia ficam gastas e escurecidas, novamente como roupas velhas, precisando de um tratamento clareador/antimofo/anticrescimento de pelo... Ah, meu diário querido, tudo isso faz sentir qualquer uma suja, mesmo depois de um belo banho de ofurô a gente fica se sentindo inadequada, me parece inevitável!

A Barbie não tinha tantos problemas com uma higiene pessoal voltada para torná-la uma criatura plastificada, sem perdas ou vazamentos, sem cheiros eventuais... ela já vinha assim, mesmo trabalhando muito, e como trabalha a Barbie, sem suar, sem menina flor, sem cansaço, uma verdadeira mulher ideal, pois ainda fala pouco e quando chega o Ken beija na boca sem se sentir fedida! O bom da Barbie era que não tinha nenhuma fissura com a limpeza do banheiro, como as mulheres que vejo na telinha parecem ter... o banheiro dessas coitadas está sempre em condições lastimáveis. Ou seja: a TV me diz que o cartão de visita da maioria das mulheres deve ser o banheiro. Que é regularmente invadido por troupes de TV que deixam a coitada constrangida e envergonhada.

Vi outro dia que hoje, em tempo de crise econômica, a Barbie mudou, novamente, de trabalho: vem com os apetrechos profissionais da Barbie professora. Sei lá, acho que comercialmente não vai emplacar muito: abaixo de Barbie Manager eu não vejo como possa ter um bom mercado... professora é uma profissão complicada na realidade de muitas mulheres. Ela é simples somente para os fieis escudeiros do Paulo Maluf, que dizia que não é professora que ganha pouco, o problema é que ela é mal casada. Certo, com um aproveitador como o Ken, a coitada da boneca é mal casada mesmo...

Querido diário, hoje, como todos os dias, acordei, tomei café, conversei com alunos e colegas, sem precisar saber exatamente o que significa ser uma mulher. Me sinto tal, e isso é tudo. Mas nem sempre é tão fácil. Quando devo dar aula, quando sou convidada a alguma mesa redonda, quando participo de alguma reunião, às vezes sou minoria ou, às vezes, sou a única mulher presente. Os gestos, os discursos e os olhares não são os mesmos daqueles de um ambiente composto unicamente de homens. Alguns homens pensam que, como sou mulher, podem interromper, fazer piadas, rechaçar minhas falas como fruto da TPM. Outros se sentem quase compelidos a serem galantes, condescendentes, mais ou menos paternalistas. Ontem, por exemplo, um colega de outra faculdade “homenageou” as mulheres por serem as responsáveis do sucesso masculino. Traduzindo: atrás de um grande homem tem uma boa mãe/esposa, que se ocupa das necessidades quotidianas do grande homem. Que nem a publicidade para as olimpíadas da Procter & Gamble, sobre as “grandes mães”. São, estas, criaturas cruéis que obrigam seus filhos a acordar quando ainda está escuro, vigiam os treinamentos dos futuros campeões, os alimentam, lavam suas roupas e se realizam unicamente no reflexo do sucesso deles. Um pouco me irrita, isso: a mãe que realiza o sucesso de seus filhos é 100% dedicada ao lar e ao cuidado deles. E aquelas mães que trabalham, que não se dedicam esse 100% ao lar e aos filhos, que lidem com seus sensos de culpa por não se dedicar 24 hs. por dia àquela que, evidentemente, continua sendo a tarefa que, oficialmente, devem desempenhar. Os homens são ausentes, no anuncio: provavelmente não existem, abandonaram o lar ou, enquanto provedores, trabalham... Belo modelo, me lembra minha infância, na escola das freiras na década de 1970... Só que em 2012! E alguém diz que as mulheres já alcançaram seus direitos, que podem ficar satisfeitas...

Querido diário, voltando ao meu dia... nos momentos em que estou na esfera pública percebo que preciso gastar uma energia para me lembrar de que meu valor não depende do olhar que os homens podem ter sobre mim. Devo me esforçar para ser ouvida sem paternalismos, concentrar-me em minha fala. Está excluída a possibilidade, porém, que queira me esquecer de ser uma mulher, alguém que não está em um lugar neutro mas, sim, engendrado.

Querido diário, meu problema é que hoje à noite devo participar de um debate sobre gênero, opressão e homofobia, na faculdade de direito. Mais uma vez, me encontro gerenciando meus medos e inseguranças. Autoconfiança. É algo que se constrói devagar a partir da infância, quando aprendemos a ter cuidado de si, longe da mãe. A confiança se constrói quando não somos constantemente desaprovados, quando os pais acreditam em nós, quando nossos amigos e parceiros não nos humilham. Assim, até hoje, continua mais fácil, para um homem, ter autoconfiança. Ainda hoje, apesar das mudanças, a maioria dos pais tende a estimular mais determinadas habilidades e criatividades dos meninos que as meninas. Os brinquedos, apresentados com fortes conotações de gênero nas publicidades, continuam sendo bonecas para as meninas e carrinhos, a guerra, a engenharia de brinquedo para os meninos. As meninas continuam com o repertório privilegiado de brinquedos para aprender a ser mães e donas de casa.

Depois, meu diário, não é de se espantar que uma mulher tenha dificuldades em tomar a palavra em público ou em expressar opiniões diversas daquelas dos homens!

Sempre fico surpreendida, quando observo o comportamento de meus alunos e alunas: elas, em geral, propõem pesquisas excelentes para seu TCC, mestrados e doutorados, mas sempre manifestam seus medos de não estar à altura, de não saber fazer pesquisa e poucas pretendem seguir os estudos. Por outro lado, os rapazes sempre estão convencidos de que suas idéias são ótima e têm mais dificuldades em aceitar as orientações.

Vou escrever de coração aberto, diário, sobre isso. Ainda não sei qual das duas posturas me deixa mais irritada. Às vezes, quero bater a porta na cara de todos, para que apreendam o que significa ser incapazes de avaliar suas próprias capacidades. Mas, é claro, não é isso que eu faço. Não seria educativo e, mais uma vez, seria uma postura que traria desvantagem para as moças. É então que, exatamente porque sou uma mulher (e sei, portanto, o que significa estar na Universidade, e ser aceita na comunidade científica – ainda machista – ), procuro ficar calma e explicar, pacatamente, meu ponto de vista, que basicamente é este:. a autoestima é muito importante, falo para um aluno cheio de si, mas em geral não é suficiente. Pensar um projeto interessante não equivale a escrever um TCC/mestrado/doutorado. Vou te orientar desde que você reflita sobre as criticas que você recebeu. Depois vamos conversar com base nisso. 80% dos rapazes não volta.

Quando falo para alguma aluna realmente boa, por outro lado, meu discurso é diferente. Não quero ser maternal, nem lhe explicar o que deve fazer. Será ela, sozinha, que escolherá seu investimento acadêmico futuro. Me limito a explicar que, na vida, é necessário aprender a lutar e que se falo que o projeto é ótimo, não é para agradá-la, mas porque o penso. Não posso injetar nela a autoestima: se a aluna não tem autoconfiança, não serei eu que vai conseguir lhe dar isso. Posso, porém, dizer-lhe que confio nela e que tenho certeza de que conseguirá. Recebendo confiança de outros pode, aos poucos, aprender a acreditar em si e se aventurar nesse território masculino que é a academia, realizando escolhas não machistas.

Querido diário, o que quero dizer é que, até quando as mulheres não vão parar de se aperceber como os homens as vêem, não conseguirão fundar em si mesmas a auto-estima. Para eu mesma encontrar confiança em mim não foi suficiente eu decidir fazê-lo. Tive que aprender a ser independente do olhar masculino (com isso, querido diário, não quero dizer somente dos homens, quero mesmo dizer masculino, que é problema de gênero, e não de sexo). Tive que aprender que não sou bonita somente quando parâmetros masculinos dizem que sou. Tive que aprender que sou boa também quando ninguém me diz que sou. Já não é fácil obter isso na universidade para um homem! Para uma mulher, é pior ainda. A competição é sempre muito grande, nossos egos docentes ficam, às vezes, tão inflados que não podemos permanecer em dois na mesma sala. E as mulheres, nisso? Em uma universidade que nada tem de neutro, pois a freqüentamos há pouco tempo, em comparação com o prazo anterior que ela teve para se instituir e instituir suas linguagens e regras, nós, as mulheres, não participamos dessa origem, que é masculina e patriarcal. Nós precisamos nos adequar ao existente. E cada uma procura sua estratégia de sobrevivência, se afastando ou se aproximando das expectativas que ela imagina a universidade tenha para ela. É triste e cômico ao mesmo tempo, lidar com nossas posturas de mulheres presas entre os exercícios de feminilidade aguda, de maternidade expandida e de machismo absoluto na maioria do tempo. Querido diário, este me parece um ponto bem complicado, porque todas as vezes que tropeço nele me pergunto em que medida eu mesma, para sobreviver, flutuo entre um modelo e outro? E todas as vezes me proponho me inspirar aos poucos modelos de mulheres admiradas que encontrei no caminho. E me pergunto quanto consigo realmente ser uma mulher que possa ser uma boa medida para as jovens mulheres (e os homens) que encontro todos os dias na faculdade.

Já está tarde, preciso me arrumar para o evento. Pensei em falar algumas coisas sobre a qual todo mundo concorde, tipo que precisa tomar providências para que ninguém discrimine e oprima essa entidade cuja vida metade do universo desconhece. Que humilhar alguém através de “brincadeiras” que envolvem a sexualidade das mulheres muito se parece com assedio sexual, pois nos deixa nas mãos de alguém que, naquele momento, possui a força física ou a autoridade moral de nos subjugar, de nos deixar impotentes. Somente a minoria GLBT sabe o que é isso. Os homens heterossexuais não chegam muito bem a imaginar, precisariam de uma boa oficina. Falar em estupro acho que não vou. Querido diário, a respeito do estupro eu tenho uma pergunta à qual todos riem, mas ninguém responde. A pergunta é essa: “Os homens, desde a Antiguidade, tem reservado para as mulheres um conjunto de atributos construído a partir de ideais que eles colocaram para si. Por exemplo, construíram a oposição Cultura/Natureza, reservando às mulheres a segunda categoria. Decorre disso uma lista infindável de atributos dualistas de gênero. “Razão VS. Emoção” é um deles. Aí estava eu hoje esvaziando minha geladeira durante um ataque de fome compulsivo/bulímica e formulei a segunda parte da pergunta: O masculino (portanto, não somente os homens, mas mulheres também), muitas vezes, utiliza formas de “justificar” ou “amenizar” o estupro com algumas formulas mágicas, entre as quais duas me interessam em particular:

1) A culpada é a mulher, pois era provocante/estava provocando

2) O homem não tem culpa, pois se uma mulher provoca, ele não tem como resistir: é um homem, tem suas necessidades hormonais.

São afirmações iguais, a primeira só subentende a segunda parte da segunda afirmação, que recita que os homens, fundamentalmente, são animais irracionais incapazes de controle, e como isso faz parte da natureza deles, não merecem, de certa maneira, uma punição dura. Mas então, pergunto eu, aquela dicotomia Razão/Emoção pode ser rediscutida? Ou aceitamos sem discutir que, na hora da violência, do assedio, eles voltem a ser criaturas emocionais e naturais, enterrando toda razão e cultura das quais tanto se orgulham e do cume das quais nos olham como criaturas menores?.

Enfim, querido diário, talvez não seja o caso de recorrer às grandes filosofias, pois o tempo vai ser curto e não sei muito bem que público participará.

Somente mais uma coisinha, querido diário, antes de te deixar. Mas amanhã escreverei mais, no segredo dessas páginas. Páginas do diário de uma mulher quarentona que, com certeza, ninguém, nunca, vai achar interessantes.

A última coisa é que, mais uma vez, às vésperas de ir para esse encontro, sinto a indizível sorte de ter nascido mulher. Indizível, pois as palavras para meus dizeres ainda são poucas, as palavras que uma mulher escreve são para diários, para literaturas poucas vezes livres do gênero até nas capas. Sorte, pois nesse meu perambular pela universidade fui obrigada a me apropriar das linguagens e dos gestos do neutro, que não me inclui plenamente. Esse neutro masculino eu conheço, é uma segunda língua que uso todos os dias. Mas tenho uma arma que somente a subalternidade me fornece: alem desse equipamento que não é meu, possuo minhas vivências, linguagens e gestos que advêm do meu pertencer ao gênero feminino. Desse patrimônio, ainda por muitas circunstâncias silencioso e silenciado, sou portadora, dele não abdico. O masculino ignora minhas potencialidades, só me atribui limites. É como conhecer duas línguas: a língua materna, feita de voz e palavras e a língua paterna, feita de escrita. O masculino não possui ambas as línguas, pois considera a primeira um acessório secundário. Minha tarefa, meu papel de mulher docente, é ser portadora critica de ambas e mostrar, principalmente às jovens mulheres, mas também aos jovens homens curiosos, como funcionam os mecanismos da opressão, da desigualdade de direitos, da noção de diferença e de reconhecimento dela. Em parte, faço isso dentro da neutralidade oficial. Mas outra parte, aquela que não se publica, reside em meus gestos, palavras e práxis.

3 comentários:

  1. Me arrependi de ter perdido o dia da tua fala, acabei me atrapalhando com as datas...
    O texto ficou interessante.

    Sentindo falta de tuas postagens no blog.
    Abraços.

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    1. As postagens ficaram suspensas por um tempo porque eu estava em obras, escrevendo uma tese... todas as palavras tiveram que "cair" nela! Mas agora liberei um amplo espaço no cérebro para voltar à ativa...

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    2. Que bom. ;)

      Agora q a sua Tese não tá sugando mais todas as suas energias bem q vc podia fazer um próximo post acerca das tuas últimas leituras.
      Confesso q fiquei um tanto quanto aliviado com teu texto acerca do Ulisses do Joyce. Rs.

      Me sentia um incapaz por não dar conta de finalizar tal leitura.

      Bom, fica a sugestão.

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