sábado, 17 de março de 2012

O ÓDIO

Film: Le Haine (O ódio).
Me veio à cabeça uma coisa estranha.
Hoje eu fiz a seguinte afirmação: existe uma coisa que chama Estado, que tem sua teoria. Nessa teoria existe um ponto que diz que um cidadão deve ser escolarizado para aprender as regras da cidadania. Eu recebi uma educação que me levou a algumas escolhas em relação, por exemplo, às noções de lei e de obediência a elas. Independentemente de quais sejam essas idéias, há uma educação direta entre o ensino que recebi, em casa, na escola, na faculdade.
Assistindo a esse filme, me veio à cabeça que o conceito de educar ao Estado nem sempre coincide com uma educação à cidadania. O Estado educa com golpes de cassetetes, com lacrimogêneos. Se impõe atacando seus inimigos.
Aprender a cidadania, pelo contrário, é aprender dentro de um modelo em que um desenvolvimento de valores de convivência e tolerância nos fazem entender, discernir em que medida seremos respeitosos da lei e em que medida lutaremos contra ela, considerando-a injusta.
Sei que é uma reflexão um pouco óbvia, mas se a gente para e pensa, percebe que a educação ao Estado faz com que fenômenos como o Nazismo tenham encontrado o aval, mais ou menos tácito, mais ou menos manifesto, dos alemães (e de inúmeros simpatizantes fora de lá): o Estado era modelizado como um mecanismo, e desde crianças, os alemães eram educados a respeitar as leis e, ao mesmo tempo, aprendiam os valores da superioridade racial, do antissemitismo, do ódio ao diverso. Na medida em que "o diverso" (judeu, comunista, cigano, homossexual, divergente dos ideais de funcionamento daquele Estado).
Do mesmo jeito que eu fui. Não, digo, educada ao respeito das leis e ao mesmo tempo aos valores e princípios do meu Estado (ESTUDEI EM ESCOLA PÚBLICA). Só que, a diferença dos alemães da década de 1930, meu Estado era Republicano, democrático e, no arco do século XX, ainda havia um número muito grande de testemunhas da Segunda Guerra vivas, com lembranças do que tinha sido viver com as leis nazifascistas e de como foi difícil se livrar delas.
Bom, é uma bela de uma diferença, entre eu e um alemão dos tempos do Nazismo.
Valores fortemente enraizados na liberdade de consciência, em princípios laicos e de forte respeito pela vida e a dignidade humana, dignidade que o trabalho nos da e que é um direito.
Assim como aprendi que é um direito a liberdade de opinião e de expressão, DESDE que não impeçam aos outros a livre manifestação da sua liberdade.
Afinal, descubro que sou uma sobrinha bastarda do Iluminismo, pois os tempo desgastou e revelou algumas facetas pouco aceitáveis de suas propostas. Não muitas, mas algumas.
Os princípios Iluministas não são de direita ou de esquerda. São aqueles que nos permitem falar de direita e de esquerda.
O desgaste no tempo reside, para mim, no excessivo mecanicismo da proposta, da crença na causa e efeito calculável.
Mas no mais, em geral, constituem meus valores.
Aí, VOLTANDO, vejo esse filme, O ódio, La Haine, sobre três caras que vivem nas banlieuse. Um árabe, um negro, um judeu. Dropouts. Fora da escola. Sem qualquer instrumento para sequer imaginar um outro mundo. Sem ter qualquer noção dos princípios que eu, por exemplo, aprendi e escolhi
(PARÊNTESE: escolhi, porque, por exemplo, esses valores me levam a respeitar crenças e religiões mas a não aceitar a supremacia de suas "leis" acima daquelas do contrato social, que NADA de divino tem. São, de fato, contratos e, em quanto tais, podem se modificar conforme o confronto entre as partes. Por isso, aliás, o Estado existe: é uma estrutura de negociação social no fórum político e institucional. Pessoas muito religiosas, por exemplo, tem OUTROS valores e OUTROS princípios, inclusive o de se permitir julgar e condenar escolhas alheias na base de outros princípios morais. POR EXEMPLO: se o aborto é objeto de disputa no fórum político, é porque está em ato um conflito social. Com base nos meus princípios, eu processo os dados da realidade, ou seja, que o aborto, proibido ou não que seja, é praticado; que se há mulheres que o utilizam como prática anticoncepcional é por sérias, seríssimas falhas no sistema de apoio à educação e ao desenvolvimento das mesmas. Que se há mulheres que, de posse de uma educação que lhes permite livre escolha, resolvem abortar, em geral o fazem como escolha traumática e dolorida. Então, já é um passo descriminalizar essa prática. Isso porque, sempre processando os dados da realidade, um grande número dessas mulheres não tem como receber tratamento digno que não provoque danos. Portanto, além de uma prática insalubre, uma criminalização as levaria à punição de hábitos e costumes e não, eventualmente, à possibilidade de fazer outras escolhas. Agora, tornar legal o aborto não é aumentar os números mas, sim, pensar que quem abortaria lá já o faria na situação atual. Pelo menos, pode fazê-lo sem colocar em risco sua saúde e recebendo apoio e atendimento para que, no futuro, não se encontre novamente nas condições de ter que escolher.
Com base em princípios cristãos (tanto faz de que seita, católicos ou evangélicos ou o que for), a mulher merece morrer enquanto assassina. Uma beleza. E eu que achava que o cristianismo era perdão e caridade. Vai vendo. Como sempre, funciona muito mais a cenourinha da salvação mas, muito muito pior, o medo do bastão nas costas. Basicamente, a maioria de quem se professa cristão confunde seu papel de paz e amor em nome de Jesus com um bem mais fácil atalho: poupar à divindade a perda de tempo de emitir seu julgamento. Basicamente, o mundo cristão, bem como o mundo muçulmano, venhamos e convenhamos, se ergueu a juiz dos costumes alheio, substituiu-se à divindade e já decide de antemão quem vai e quem não vai pra danação. FIM DO LONGO PARÊNTESE, voltou aos três do filme).
Os três protagonistas não tem princípios, nem religiosos. Não tem capacidades dialéticas, a única dialética é a violência.Desenraizados de suas culturas, não tiveram nem de longe a chance de confrontar o outro DENTRO do sistema. Estão fora, sem solução. As escolas queimam. Tudo queima, e trabalho não existe ou, pelo menos, não dignifica ninguém, é somente exploração (a mão de um dos rapazes costura em casa sem, evidentemente, grandes lucros....).
O Estado não os considera membros. Os rejeita, e com violência. Não é que chego qualquer conclusão, não. Simplesmente, é o que me veio à cabeça assistindo ao filme.
Não creio que a solução venha de uma imposição de valores, mas da criação de novos. E que o Estado passe a ser ancorado nos princípios de igualdade, de liberdade, de tolerância, de solidariedade e capacidades de criar cidadãos capazes de pensar com a própria cabeca.
Que delírio, tudo isso, heim?

Um comentário:

  1. Primeiro: AMEI teu blog.
    Lindo.

    Principalmente as postagens acerca de literatura.
    Muito boas!

    Beijos.

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