quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DIARRÉIA ACADÊMICA.


Algumas “notas acadêmicas anarquistas”. Não, não no sentido da história do anarquismo, ou o anarquismo na literatura, não. Anarquistas no sentido de não quererem se constituir como corpus que pertence a um campo. Se eu escrevo sobre literatura brasileira, não deveria eu ter um “repertório” teórico, possivelmente atrelado às Letras, como Estudos literários / Teoria do romance / Semiótica literária? Ou, de repente, descobre-se que meu campo de pertencimento é, em sentido curricular, de vertente mais histórica, então: não deveria eu estar a par de todos os repertórios teóricos e linhas de trabalho e de pesquisa da história econômica, social, de gênero, colônia, império e debate teórico? Acredito que sim, se eu quisesse definir, colocar uma fronteira ao meu objeto de estudo nesse texto. Mas, por acasos da vida, que não vêm aqui considerar, minha especialização é em assuntos gerais (e, freqüentemente, aleatórios), amplos e irrestritos, uma verdadeira orgia enciclopédica na qual, às vezes, paro e penso: sei muito, nada muito bem. E aí, recomeça a busca de aprofundamentos, mas sempre em assuntos gerais: de repente, uma necessidade de entrar em uma livraria. Em geral, escolho as estantes das Ciências Humanas: filosofia, sociologia, história, comunicação, estudos literários, antropologia são, por mim, cuidadosamente exploradas, em busca de algo “esclarecedor” sobre a minha última leitura. E quando encontro, aí está uma nova dúvida, e o ciclo recomeça, até uma nova crise de terror em que minha vacuidade me assombra... Nas palavras de Machado: “Meu nome é Veleidade”, enfim aqui vou eu, d. Benedita do século XXI. Oriunda de um mal estar acadêmico que me persegue desde que comecei a enxergar alguns mecanismos perversos da universidade, que já está no limite de sua explosão, mas que nunca explode, porque descubro que, em todo seu mecanismo infernal, dilacerada pela dúvida se o intelectual deve ou não ter patrão, em um mundo de Mercado, com a decadência do setor público, ainda assim, essa academia resiste, porque suas fundamentas foram se estabelecendo em um mundo e em um meio que se caracterizava por ser intelectual e por deter uma fatia interessante de poder, a Igreja do mundo medieval. As etapas, as hierarquias da carreira acadêmica se traduzem em práticas nas quais a modernização não teve sucesso. Por sua natureza, a Universidade é anticapitalista: quando a academia nasce, nasce como centro intelectual oferecido pelos mais tenazes concorrentes do lucro: os teólogos medievais, personalidades que teorizam a busca do conhecimento de Deus como aspiração suprema. O lucro é discutido, nas salas universitárias, somente em relação ao pecado e à salvação. Ser professor universitário, nos tempos áureos da Escolástica medieval significa ter status, influência e, portanto, poder. Poder “social”, não “político” (a política, na Idade Média, não é um espaço identificável com seu desenvolvimento moderno), não econômico. Horizonte medieval que sofre os golpes do mundo mercantil na baixa Idade Média. As exigências do mundo urbano transferem demanda nova ao conhecimento: muitos são os estudantes que encontram nas instituições os princípios, fundamentos teóricos de suas práticas (Certeau), especialmente nos estudos desenhados por Hugo de São Vitor já no século XII. Ele estruturou um novo curriculum que, além das tradicionais artes do trivium (gramática, dialética e retórica) e do quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia) incorporava também as exigências “práticas” do mundo mercantil e urbano: as artes mecânicas (fabricação da lã, armamento, navegação, agricultura, caça, medicina, teatro). Como se vê, a universidade nunca perdeu a prática de refletir sobre as necessidades dialéticas do conhecimento. E este, é o lado bom da tradição. Infelizmente, a academia herdou alguns “problemas”: muitos de seus representantes pararam de pensar em seu papel na sociedade, restringiram seus objetivos à repetição do que já existia, sem a capacidade de corresponder dialeticamente às exigências da sociedade. No mundo medieval havia muita clareza sobre o que é pecado. Todos são pecadores, alimentam as chamas do Inferno, alguns se arrependem, e vão ao Purgatório. Poucos chegam diretamente ao Paraíso. E os pecados capitais são sete, como sete são as virtudes. Ninguém escapa desse esquema, é base reguladora e medidora das relações sociais medievais. É a partir da elaboração dos conceitos de Pecado e de Salvação que se eliminam os inimigos. Então, quem mais os conhece, os teólogos, os estudiosos, se propõem a decidir o “certo” e o “errado” no mundo. Para isso, na universidade medieval, corre-se o risco de pecar por vaidade e orgulho, pecados que não fazem bem ao curriculum no dia do Juízo. Por outro lado, geralmente a relação comum entre estudantes e professores se dava em sala de aula, em um espaço específico dessa “rota” do poder/saber: infelizmente, o que a história da cultura e do saber considerou esquecível, a própria história é obrigada a lembrar nas punições daqueles que foram dignos do Inferno de Dante, não com os espécimes punidos pelo pecado do orgulho, mas sim como sodomitas e hipócritas: os professore universitários. Lembremos que o acesso aos estudos universitários era limitado aos homens. O panorama do saber, portanto, no que é academia da baixa Idade Média e no Renascimento, é criticado. Todavia, os críticos pertencem às suas fileiras, ou pelo menos, nelas se formaram. São a primeira leva de humanistas, seguidas pelos intelectuais do Renascimento e do Estado Moderno.

A universidade formou pensadores do Estado Moderno, ou seja: os inimigos da Idade Média e de suas estruturas do antigo regime: mas ela própria, insigne representante dessa Idade Média, sobreviveu e se reformou, mantendo a base nas características discursivas e nas práticas intelectuais anteriormente estabelecidas. Os debates atuais apontam para uma derrocada rápida de alguns baluartes da sobrevivência de uma autonomia intelectual, pela qual as Universidades lutaram na Idade Média: não haverá espaço, no Mercado para se pensar sem “tutela” patronal? Quem exercerá, nessa situação, a crítica necessária aos poderes, não só pela sua derrocada, como pelo seu sucesso?

As crises não são somente materiais: faltam recursos, ou melhor: o mecanismo para obtê-los é viciado
e obsoleto. Por outro lado, às vezes, temos a gratificação de crises de natureza teórica: nesse mundo em busca de padronização, há um conflito entre super-especialização e trans-especialização, definindo, com isso, a possibilidade de se colocar nas áreas de fronteira entre campos do conhecimento. Nas áreas de fronteira, as pessoas são, facilmente, “bilíngües”. As trocas, em momentos de paz, são favoráveis e enriquecedoras.

3 comentários:

  1. texto muito complexo para um comentario... mas a foto, ó q costa de nadadora..hahahahha

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  2. Bom, isso é tãããããão complicado ...A atual cisão academia-sociedade repousa em diversos fatores, mas para efeitos desse comentário, vou me deter em apenas um: a mediocridade de nossa atuais lideranças acadêmicas. Num livrinho publicado há cerca de doze anos na França (no Brasil saiu em 2003) intitulado “Os usos sociais da Ciência”, Bourdieu distinguia dois tipos de “capital científico”, um propriamente intelectual e outro mais político-institucional. O campo científico, dentro dessa visão, seria o espaço onde os agentes se relacionariam, a partir desses dois pólos (quase sempre opostos, mas que nada impediria de se constituírem como complementares). Até aí, nada de mais para quem conhece o pensamento de Bourdieu, mas o que me parece interessante, nesse livrinho em particular, é quando ele, lamentando o processo freqüente de “mediocrização” que geralmente é imposto pelos detentores do capital institucional aos detentores do capital intelectual, preconiza a figura de um dirigente de outra natureza. Vale a citação um pouco longa, na página 64 da edição brasileira:
    >>À elaboração de critérios de invenção e de inovação em matéria de inovação científica e econômica, seria preciso acrescentar critérios em matéria de inovação organizacional e conferir um reconhecimento explícito aos agentes capazes de brilhar segundo esses critérios. O que teria, talvez por efeito, a mais ou menos longo prazo, atrair às posições administrativas não os pesquisadores (de invenção ou de inovação) medíocres ou em declínio ou, muito simplesmente, ambiciosos e carreiristas (como é o caso, quase sempre hoje, com todas as conseqüências que logicamente se seguem, especialmente em matéria de avaliação), mas de verdadeiros empreendedores específicos. Esses dirigentes de um novo tipo se atribuiriam como objetivo, à moda de alguns editores ou diretores de galerias, agir como descobridores capazes de favorecer pesquisadores atípicos, de animar e organizar empresas coletivas, elaborar os editais de maneira a ajudar os pesquisadores menos experientes a conciliar as demandas externas com as exigências internas; logo, de se comportarem menos como executivos encarregados de estimular, assistir, apoiar, encorajar e organizar não só a pesquisa, mas também a formação (por programas de educação permanente e de interformação) e a circulação da informação científica.<<
    E aí, conhece algum “empreendedor específico” disponível para a nossa universidade?

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  3. Pulei um trecho no meio da citação: >> ...menos como executivos encarregados de sancionar do que como preparadores encarregados de estimular, assistir...<

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