

Desde criança gostava de ler: com dez anos era fã da detetive Nancy Drew e dos Pimlico Boys: policiais infantis. Por outro lado, gostava também de Tom Sawyer, Huck Finn e Alice no país das maravilhas. Meus problemas datam dessa época, acredito: de um lado, lia ficção de massa, do outro, literatura infantil canônica. Gostava das duas, mas crescendo as coisas pioraram: lia, ao mesmo tempo, Dickens e Stephen King. Já dizia Hugo de São Vítor que algo acontece, sempre, quando se lê. No mínimo, se aprende a ler. Por isso, como leitora e, por acasos do destino, estudiosa de livros e leitores, aprendi que é errado julgar um livro pela capa. Quando cheguei ao Brasil, há alguns anos, precisava aprender, e rapidamente, a língua.
Sou indisciplinada o suficiente para não agüentar cursos de língua: com fastio penso nas tediosas sessões de “Bom dia, boa tarde, meu nome é...” das aulas de língua, Lembrei-me de como meu inglês “cresceu” durante minha estadia em Amsterdam, com uma bolsa de estudo para estudar latim: já tinha que entender uma língua morta e enterrada e não consegui aprender Holandês. Meu inglês, porém, ficou enriquecido: todos falam a língua, portanto podia me comunicar. Só que falavam inglês bom, e eu precisava estar a altura. Resultado: resolvi ler em inglês. Primeiramente, escolhi livros bem de massa, tipo policiais ou histórias de fantasy sabendo que a linguagem frequentemente pobre não ia me enlouquecer por não entende-la. E, no meu tempo livre, fui lendo.
Não parei, hoje enfrento sem dificuldade Dickens ou outros autores mais “clássicos”, poderíamos dizer. Aqui no Brasil, segui a mesma trajetória: comecei com literatura bem simples e de vocabulário pobre, Paulo Coelho, para ser exata. Também, ao mesmo tempo, lia literatura não ficcional para meu doutorado. Uma tese sobre modernismo brasileiro, que me “arrastou”, já na época, pelo mau caminho da leitura dos documentos literários, ao invés de me dedicar aos estudos teórico e às pesquisas existentes sobre essa literatura.
Não parei e não vou parar de ler “bobagens”, pois elas são altamente reveladoras dos públicos leitores e, vivendo no mundo atual, me permitem algumas referências comparativas com outros públicos. Considero-me privilegiada por conhecer alguns autores considerados canônicos, e desejaria que mais pessoas os encontrassem sem intermediações. Desde os vinte e cinco anos meu work in progress é a leitura integral da obra de Zola, autor que pertence ao “cânone” literário universal, mas de sua obra se encontram poucos títulos traduzidos com facilidade.
Ainda, me cimentei com Dostoievskij: comecei pela história de Natalia Niesvanova, pois sabia que havia “rumores” sobre a relação homossexual da protagonista com a princesa Marina, mas queria saber mais. Li Crime e Castigo, com o qual ri sozinha no meu lar e do qual marquei páginas e páginas com anotações. Aos poucos, fui me interessando cada vez mais no desenlace do encontro entre o “cânone universal” e a literatura lusófona. Deparei-me com o século XIX, de Eça de Queiroz para o litoral brasileiro, encontrando Júlio Ribeiro, Aluisio de Azevedo, Adolfo Caminha.
Cada vez mais preciso saber o que está impresso na obra citada em determinado artigo ou livro. Se não fizer isso, me sinto como se estivesse falando do que não sei e nunca vi, sempre às ordens da palavra alheia, à qual confiro por obrigação uma autoridade acadêmica. Mas, mais medieval do que nunca, reconheço essa autoridade somente no ato de minha apropriação da leitura: não somente concordando com o crítico ou estudioso, mas também discordando dele, ato tão profundamente acadêmico quanto mais embasado na leitura e no estudo.
Vi uma publicidade de uma escova de dentes da Colgate.
Já que estou envolvida na elaboração de um ensaio acadêmico de máxima & absoluta seriedade, era óbvio que minha cabeça ficasse divagando, perdida atrás do simbolismo de duas escovas dentais conversando tranquilamente na tela de minha TV.
Já está assumido que é normal ver escovas de dentes falantes.
Isso é preocupante?
O que me assusta destas duas escovas de dentes animadas é que elas não estão atuando como duas personagens infanto-juvenis, mas para um público adulto.
E meu ensaio acadêmico hiper-mega-ultra profundo & erudito sobre a memória do passado, do presente e do futuro foi definitivamente derrotado pelo interesse em mim suscitado pelas duas escovas de dentes.
Oh, tempos de costumes ingratos, onde ao severo trabalho do erudito se substitui assombrosa a peça publicitária mais escrotinha dos últimos tempos!!! Reparem, aqui, como parece de verdade meu desespero em relação ao ensaio derrotado por novos & BEM mais dignos temas...
A publicidade em questão é escrotinha porque me ofende em dois pontos, sem que reparemos muito sobre o porque, enquanto a alegre paleta de cores escolhida para essa animação de poucos segundos nos remete às cores de brinquedos infantis:
1) No tratamento infantil reservado aos compradores do produto que, pela conversa explícita, tão crianças não se imagina que sejam.
2) Nos estereótipos sexistas que as duas escovas engendram.
A publicidade: duas escovas, uma vermelha, mais baixa, com formas no cabo que remetem a um corpo com curvas, voz feminina, dá uma cantada barata na segunda escova, branca com pontos de cor, mais... “ereta”, voz masculina. Uma escova “varonil”. Se inclinando para a escova macho, a escovinha vermelha, que chamarei de RED, aproxima seu busto e começa e tecer elogios das virtudes atribuídas ao macho de plástico falante, que chamarei NERD. Esse estranho espécime químico/plástico, o Nerd responde, com efeito com voz de nerd, mostrando a “solidez” da fama, explicando que, sim, ele limpa e protege muito, mas muito mais cuidadosamente contra as bactérias. Enquanto isso, na tela se pode apreciar o movimento de “cuidadosa limpeza & higienização” de uma cavidade oral. A “peça” se encerra com a afirmação da escovinha sexy RED de que ele realmente alcança todos os pontos...
ATÉ CHEGAR LÁ, ONDE NENHUM HOMEM JAMAIS ESTEVE?????
Ora, pois. Ora, pois.
Espera-se que a animação, com essa “carga erótica” embutida não fora pensada com o objetivo de alcançar um público infanto-juvenil.
Seria, aqui, redundante, explicar que um tipo de publicidade assim é sexista na medida em que, para lá o jogo de paquera, saudável atividade, as duas escovas codificam “mitos” sobre forças e fragilidades.
A escovinha Red é uma pequena mulher de plástico enfaixada por um vestido vermelho, que não remete exatamente a um ambiente de escritório. Ela desloca seu “rostinho” de cerdas, talvez traindo a idade acima dos 40, não é voz de menina, e suas cerdas estão um pouco gastas.
Pobre sexy Red, que já se dispõe à resposta mais Nerd de todas, enfastiante, sem brilho, digna de um engenheiro acostumado ao lado prático das coisas, ela olhando com seus olhinhos azuis para frente e para cima, enquanto o amigão Nerd, em sua altura melhor, acaba dando uma espiadela nos peitinho da plástica Red, ele, que deve ter passado boa parte da sua vida lidando com máus álitos, barriguinha, futebol & cerveja (Nerd também não é mocinho...). Nerd explica o que sabe fazer. Sem poesia. Do alto de sua “hombridade”.
Não estou brincando, essa publicidade é de um sexismo incrível, e se for para gente “adulta”, me poupem da metáfora e coloquem atores em carne e osso, que meu cérebro derrete, na frente dessa meleca animada.
Claro: dessa maneira a Colgate fixou seu produto em alguém. Não em mim, pois não lembro do nome do Nerd.
Não quero um mundo politicamente correto, mas estou um pouco entediada pelo fato de não me reconhecer nas representações que de certas idéias do feminino bem marcadas por aí.
Quero dizer, se a publicidade é a representação de sonhos e desejos de consumo mais ou menos induzidos,
O QUE ACONTECE COM AS PRIVADAS????
Quero dizer, contem o numero de vezes que passam publicidades em que mulheres desesperadas recebem visitas inesperadas em seus lares. Pode ser uma verdadeira equipe de fiscalização televisiva vestida de jalecos brancos ou uma atriz, ou a criança da vizinha que resolveu atualizar o dito sobre a grama do vizinho que é sempre mais verde pela versão o banheiro da vizinha é sempre mais limpo.
Todas essas visitas são acompanhadas por um pedido assaz estranho: posso ver seu banheiro/sua privada? Eis a primeira estranheza: POR QUE toda essa gente quer “ver” a privada, que já se tornou, assim, lugar de sociabilidade extrema?
A resposta não é simples: os banheiros dessas pobres mulheres são imundos, fedem, precisa de escafandro de proteção, para se aproximar deles... Por que cargas de água toda essa gente tem esse desejo perverso????
REALMENTE OS GÊNIOS DA PUBLICIDADE SÃO TÃO ALIENADOS QUE ACREDITAM QUE MEU SONHO DE CONSUMO DEVE SER OBTER A PRIVADA MAIS LIMPA DA HISTÓRIA?
O QUE SE GANHA, COM ISSO? ALGUM NOBEL?
E, principalmente, a dúvida:
POR QUE NENHUM HOMEM ESTÁ ENVOLVIDO NA TAREFA DE ENCONTRAR
UM PARAÍSO
NA PRIVADA?
Volto ao meu ensaio erudito...